CAMINHOS DE PAPEL

segunda-feira, agosto 15, 2005

CAFÉ DA MANHÃ

(releitura do poema de Jacques Prévert, Déjeuner du matin, 1º lugar do Prêmio Paul Harris, de Crônicas, no Algarve, Portugal, 2003)

Sentado à minha frente, calado, ele acendeu o cigarro sem mesmo me olhar, numa indiferença atordoante, medida exata de seu desprezo. Enterrei-me dentro de mim ainda mais, numa fuga dessa realidade. Era terrivelmente doloroso admitir que nosso relacionamento chegara ao fim, num ritual de flagelação se estendendo além daquilo que alguém pudesse aceitar como razoável, fosse ali à mesa do café, fosse em qualquer outro lugar.
Loucura! Parecia inadmissível haver algo de razoável num fim de caso como o nosso. A noite anterior fora de uma dilaceração canibalesca fazendo-me, agora, sangrar em silêncio sobre a toalha branca. Ele desistiu de mim; como mulher, como pessoa, como nada. Resvalou no patético eu pensar em continuar algo definitivamente interrompido, assustada demais para aceitar a verdade.
Cabeça baixa e cotovelos sobre a mesa, ele girou lentamente a colherinha na xícara de café quase vazia, como se procurasse ler algum futuro na borra enegrecida da bebida. Tenho certeza que, como eu, não viu nada além do líquido escuro, como escura fora nossa vida.
Displicente, amassou o cigarro no cinzeiro e engoliu o resto da bebida, fazendo-me imaginar como se a ele tivesse sido dada cicuta. Sorri para dentro por pensar assim. Senhor de si e de suas ações, ele não se daria a esse sacrifício. Senhor de mim também, mesmo não me querendo. Numa inexplicável contradição, manteve-se cabisbaixo, dedo indicador empurrando algumas migalhas de pão de um lado para outro.
Isso me paralisou. Agoniada, esperei por seu momento de carrasco, que me encarasse e me destruísse de vez, pondo de lado aquela indiferença de víbora adormecida, sempre pronta para atacar.
Suspirou fundo; parecia estar carregando um enorme peso sobre os ombros. Olhou para a janela que mostrava uma manhã de chumbo. As gotas da chuva escorrendo pelo vidro, fizeram-me ainda mais infeliz ao procurar por minhas próprias gotas para colocar sobre a mesa.
Empurrou a xícara para um lado, levantou-se e vestiu o paletó. Depois de acender outro cigarro, foi até a porta da cozinha deixando sobre seus passos um fio tênue de fumaça, que aos poucos foi desaparecendo. Imóvel por instantes olhou, sempre calado, as poças no quintal.
Saiu para a chuva e eu fiquei vendo seu vulto lentamente desmanchando-se na cortina de água. Do fundo da memória, tal um aviso tardio, ocorreram-me fragmentos de Prévert, descrição amarga de um amor transformando-se em migalhas: “Et il est parti sous la pluie; sans une parole, sans me regarder. Et moi, j’ai pris ma tête dans ma main, et j’ai pleuré(1).
Veio uma lágrima, e outra, e outra, de uma mulher mergulhada numa torrente da qual, em verdade, jamais tenha saído.

(1) E ele partiu sob a chuva, sem uma palavra, sem me olhar. E eu, pus as mãos na cabeça, e chorei.

2 Comentários:

  • Às 7:09 AM , Anonymous Anônimo disse...

    O trágico-lírico. Gostei.
    Cármen Rocha (contosdacarochinha)

     
  • Às 7:20 PM , Anonymous Anônimo disse...

    Eu já tinha lido essa crõnica. Muito bonita, Carlos.
    Beijos
    Leila

     

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial