CAMINHOS DE PAPEL

terça-feira, dezembro 04, 2007

MULHER EM LUTA (c)

Na noite quente e abafada, a chuva acabada de cair, forte mas pouca, só faz aumentar a sensação de sufoco tornando o ar quase irrespirável. O corpo suado da mulher revira-se na cama espaçosa e mal aproveitada; o travesseiro ao lado, vazio, aumenta sua inquietude e o mostrador luminoso do relógio parece afirmar ter a hora muito mais que sessenta minutos.
No jardim, as sombras do arvoredo tentam violar a veneziana e entrar no quarto como fantasmas lúbricos obcecados em tocá-la. Seu sangue ferve de desejo. Os pensamentos atravessam as paredes e percorrem ruas e becos numa desesperada busca.
Ah, a humilhação... Arrastar-se aos pés de seu homem, até isso fizera por ele que, mesmo numa altivez doentia, sempre a contemplou com horas de prazeres inauditos fazendo-a vibrar em cada célula. Corpo sobre corpo, mãos indecentes percorrendo-lhe os lugares mais recônditos e aquele gozo parecendo descer dos céus para explodir no desprezo do animal-macho abrindo feridas de longa cicatrização.
Seu amor-próprio está dilacerado. Que importa? Tem seu homem e dele não abrirá mão. Dolorosamente, não consegue dar conta da ilusão a consumi-la, conduzindo-a para uma falsa certeza de posse.
Noite quente e de insônia. Ela tem o corpo a arder e molhar a cama. Incontida, molha-se. Recorda daquela língua de serpente aproveitando do sal de seu corpo. Sal e leite. Ela morde o travesseiro lembrando-se da posse incondicional, total.
Lentamente, desliza para o lado oposto da cama. O vazio faz uma lágrima escorrer, mas imediatamente contida; resquícios de dignidade, logo consumida pelo desejo a queimá-la. O espaço enorme deixa-a pequena e grande é a angústia que aquela ausência traz.
Seus olhos percorrem a penumbra, buscando vultos. Aquele a quem espera, não aparece; está distante, talvez em outra cama, pensamento que a faz morder os lábios e crispar as mãos.
Geme ao lembrar do homem-animal mordendo-lhe o pescoço. Como o leão que arrasta a gazela abatida, assim era levada para a cama e desnudada em fúria. Dor e gemidos. Prazer e gemidos. Submetida, deixava-se prender naquelas loucuras e mentiria a si mesma se não admitisse o gozo que a levava às portas do Éden.
Foi ele o seu sedutor, aquele a iniciar nos caminhos da paixão, vindo nos sonhos como o príncipe encantado a resgatá-la da solidão do desamor. Suas fantasias se materializaram diante daquele cavaleiro de lança pronta para o embate. Não entendeu, então, mas também para seu abate.
Conquistada, jogou-lhe as tranças do alto da torre e a cada incursão sentiu-se cada vez mais princesa, sempre mais mulher. Passou a aguardar seu retorno com ansiedade crescente, pouco importando aquelas serem expedições púnicas. Abriu-lhe todas as portas. Seu castelo foi invadido noite após noite e por seus corredores úmidos escorreu a seiva de sua presença. Entretanto, jamais se deu conta de que, lentamente, formou-se um labirinto de incógnitas a rodeá-la. Ainda assim, o queria feliz e entregou-se por inteiro, não percebendo em seu onirismo ser uma heroína sem herói.
Noite quente e abafada. O corpo febril se contorce sob os lençóis. Suas mãos pousam nos seios arfantes. Aperta-os, lembrando-se de outras mãos a fazê-lo com mais volúpia e arrastando-a ao limbo do prazer que explodiria em seguida.
Onde estarão essas mãos agora? Num átimo e sem pejo rompe em lágrimas. Aceita-o em sua cama, para o bem e para o mal, mas não o admite em outras. Ela o satisfaz com todos os requintes, de prazer ou de tortura. Suas mãos o moldam e ele cresce nesse barro de paixões, para depois se estilhaçar jogando-a num vazio sem limites.
O calor tolda-lhe os pensamentos. Em todo esse tempo de entrega total, jamais se viu questionando tal relação a ultrapassar os limites do sensual, chegando ao pornográfico, inevitável para ela. Manipulador, ele a satisfez nos dois extremos: num primeiro momento, paixão verdadeira e avassaladora para em seguida descambar para a volúpia grosseira, descabida mas consentida.
Os últimos clarões dão um toque fantasmagórico ao quarto. É uma encruzilhada onde agora está, um eu que se divide em dois. Parte renuncia ao chamado dos instintos; outra, vigorosa, puxa-a pelos cabelos ao encontro daquilo a que se propusera. Um arrepio percorre seu corpo sem lhe dar prazer. A batalha há muito aguardada está se desenvolvendo.
Aos poucos uma suave aragem penetra pelas frestas, balançando as leves cortinas numa estranha dança dos véus. A calma a rodeia, fazendo-a sentir-se indecisa sobre se irá exigir-lhe a cabeça. Está confusa, como o são todas as amantes dilaceradas. Como elas, percebe que a renúncia machuca.
Lágrimas banham o travesseiro. As duas mulheres dialogam, tergiversam num primeiro momento, afrontam-se no seguinte; não há concessões. O cheiro da terra úmida é um lenitivo, ainda que os espíritos não se fundam e o tempo passe de forma lenta e agoniada.
O ruído de um carro parando no portão; uma decisão é necessária. Ela respira fundo, corpo teso.
A chave rodando na fechadura e depois a porta batendo, sem ser mostrado o cuidado de se evitar isso. Um suspiro parece libertá-la de mil fantasmas e a alivia.
Passos na escada, sem pressa e sem justificativas. Tensa, olhos cerrados, não quer encará-lo nesse primeiro momento.
Noite quente e calma. A decisão já está tomada.
O lençol é jogado longe. Deitada, braços abertos sobre a cama, ela é a cruz de carne de seu próprio sacrifício.

2 Comentários:

  • Às 5:52 AM , Blogger Hades Pierrot disse...

    Espero um dia conseguir me expressar tão bem, terei seus textos sempre como referência. Parabéns!

     
  • Às 4:24 AM , Anonymous Anônimo disse...

    Belíssimo texto, Bruni!Sensível,envolvente e competente.Parabéns, meu amigo...
    Beijos da Izilda

     

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