CAMINHOS DE PAPEL

terça-feira, dezembro 13, 2005

OS SOLDADOS, OS PAISANOS E O GENERAL

(A cada milágrimas, um milagre acontece) - Alice Ruiz



Ela tem apenas treze anos. Analfabeta, órfã de pai e mãe, foi adotada pelo mundo, na pior acepção que se pode dar a esse termo. Não obstante, quer se tornar evangélica e sonha em se formar médica. Não tem a noção exata da dimensão que separa seu sonho de uma realidade perdida quase no infinito.
Seu mundo é a favela. Seus companheiros de armas, no sentido literal, são soldados numa luta insana contra a decência, ou o que ainda resta dela. São os portadores da morte, traficantes de drogas, aqueles que não hesitam em matar numa guerra onde, como em qualquer outra, os mais indefesos pagam preços altíssimos.
Ela, a menina, ajudou com um simples sinal para a parada de um ônibus, seus companheiros de trincheira a incendiá-lo e queimar vivas várias pessoas, numa rua esquecida de um também esquecido subúrbio de um Rio de Janeiro ainda mais esquecido.
Os soldados, como se auto-denominam, são agressores-vítimas. Não estamos, entendam, fazendo apologia das condições sub-humanas a que esses seres foram lenta e gradativamente empurrados, graças à inépcia de seguidos governos, tão indecentes quanto eles.
Nos dias de hoje, esses soldados rasos respondem a outros, que por sua vez, devem obediência a tenentes e capitães-do-mato e dos palácios, obediência indiscutível sob pena de serem exterminados. E substituídos.
Muito junto a eles e, de certa forma, num nível ainda mais inferior, estão os paisanos, aquelas pessoas que, indefesas e cercadas tanto por forças ditas do bem como aquelas do mal, maléficas por igual, pois em vários aspectos se equivalem, e sofrendo com a insanidade consciente dos soldados de ambos os lados ou com a inconsciente da menina que quer ser médica.
Felizmente, ainda não alcançada pela sujeira dessa guerra, há a figura de outro tipo de general: Ivaldo Bertazzo, que livrou das ruas garotos e garotas prontos a serem cooptados pelas facções em luta (mesmo com o risco de serem justiçados pelas forças do “bem”) e colocou-os em uma nova trincheira: o palco. No espetáculo, “Milágrimas”, (em cartaz até março), seus soldados guerreiam pela paz. Não há como não se emocionar ao nos depararmos com a arte magistralmente rústica, enquanto quase-amadores, de jovens que foram virtualmente arrancados das portas de uma guerra que ameaçava arrebatá-los, para nos presentear com imagens gestuais de poesia musicada.
Como já acontecera em Sanwaad, rua do encontro, esses adolescentes nos cobrem de esperança ao mostrarem que basta um dedo apontando para o futuro, para que uma provável página de guerra não venha a ser escrita.
O sol há de brilhar mais uma vez” ...
Essa frase, no final antológico do espetáculo, com a obra-prima de Nelson Cavaquinho ecoando por toda a sala e dentro de nós mesmos, nos lembra que algumas batalhas, nunca a guerra, podem ter sido perdidas, e a menina que sonha ser médica poderá, enfim, colher seu milagre.

quinta-feira, dezembro 08, 2005

MULHER EM LUTA

Na noite quente e abafada, a chuva acabada de cair, forte mas pouca, só faz aumentar a sensação de sufoco tornando o ar quase irrespirável. O corpo suado da mulher revira-se na cama espaçosa e mal aproveitada; o travesseiro ao lado, vazio, aumenta sua inquietude e o mostrador luminoso do relógio parece afirmar ter a hora muito mais que sessenta minutos.
No jardim, as sombras do arvoredo tentam violar a veneziana e entrar no quarto como fantasmas lúbricos obcecados em tocá-la. Seu sangue ferve de desejo. Os pensamentos atravessam as paredes e percorrem ruas e becos numa desesperada busca.
Ah, a humilhação... Arrastar-se aos pés de seu homem, até isso fizera por ele que, mesmo numa altivez doentia, sempre a contemplou com horas de prazeres inauditos fazendo-a vibrar em cada célula. Corpo sobre corpo, mãos indecentes percorrendo-lhe os lugares mais recônditos e aquele gozo parecendo descer dos céus para explodir no desprezo do animal-macho abrindo feridas de longa cicatrização.
Seu amor-próprio está dilacerado. Que importa? Tem seu homem e dele não abrirá mão. Dolorosamente, não consegue dar conta da ilusão a consumi-la, conduzindo-a para uma falsa certeza de posse.
Noite quente e de insônia. Ela tem o corpo a arder e molhar a cama. Incontida, molha-se. Recorda daquela língua de serpente aproveitando do sal de seu corpo. Sal e leite. Ela morde o travesseiro lembrando-se da posse incondicional, total.Lentamente, desliza para o lado oposto da cama. O vazio faz uma lágrima escorrer, mas imediatamente contida; resquícios de uma faísca de dignidade, logo consumida pelo desejo a queimá-la. O espaço enorme deixa-a pequena e grande é a angústia que aquela ausência traz.
Seus olhos percorrem a penumbra, buscando vultos. Aquele a quem espera, não aparece; está distante, talvez em outra cama, pensamento que a faz morder os lábios e crispar as mãos. Geme ao lembrar do homem-animal mordendo-lhe o pescoço. Como o leão que arrasta a gazela abatida, assim era levada para a cama e desnudada em fúria. Dor e gemidos. Prazer e gemidos. Submetida, deixava-se prender naquelas loucuras e mentiria a si mesma se não admitisse o gozo que a levava às portas do Éden.
Foi ele o seu sedutor, aquele a iniciar nos caminhos da paixão, vindo nos sonhos como o príncipe encantado a resgatá-la da solidão do desamor. Suas fantasias se materializaram diante daquele cavaleiro de lança pronta para o embate. Não entendeu, então, mas também para seu abate.
Conquistada, jogou-lhe as tranças do alto da torre e a cada incursão sentiu-se cada vez mais princesa, sempre mais mulher. Passou a aguardar seu retorno com ansiedade crescente, pouco importando aquelas serem expedições púnicas. Abriu-lhe todas as portas. Seu castelo foi invadido noite após noite e por seus corredores úmidos escorreu a seiva de sua presença. Entretanto, jamais se deu conta de que, lentamente, formou-se um labirinto de incógnitas a rodeá-la. Ainda assim, o queria feliz e entregou-se por inteiro, não percebendo em seu onirismo ser uma heroina sem herói.
Noite quente e abafada. O corpo febril se contorce sob os lençóis. Suas mãos pousam nos seios arfantes. Aperta-os, lembrando-se de outras mãos a fazê-lo com mais volúpia e arrastando-a ao limbo do prazer que explodiria em seguida.Onde estarão essas mãos agora? Num átimo e sem pejo rompe em lágrimas. Aceita-o em sua cama, para o bem e para o mal, mas não o admite em outras. Ela o satisfaz com todos os requintes, de prazer ou de tortura. Suas mãos o moldam e ele cresce nesse barro de paixões, para depois se estilhaçar jogando-a num vazio sem limites.
O calor tolda-lhe os pensamentos. Em todo esse tempo de entrega total, jamais se viu questionando tal relação a ultrapassar os limites do sensual, chegando ao pornográfico, inevitável para ela. Maniqueista, ele a satisfez nos dois extremos: num primeiro momento, paixão verdadeira e avassaladora para em seguida descambar para a volúpia grosseira, descabida mas consentida.
Os últimos clarões dão um toque fantasmagórico ao quarto. É uma encruzilhada onde agora está, um eu que se divide em dois. Parte renuncia ao chamado dos instintos; outra, vigorosa, puxa-a pelos cabelos ao encontro daquilo a que se propusera. Um arrepio percorre seu corpo sem lhe dar prazer. A batalha há muito aguardada está se desenvolvendo.
Aos poucos, uma suave aragem penetra pelas frestas balançando as leves cortinas numa estranha dança dos véus. A calma a rodeia, fazendo-a sentir-se indecisa sobre se irá exigir-lhe a cabeça. Está confusa, como o são todas as amantes dilaceradas. Como elas, percebe que a renúncia machuca. Lágrimas banham o travesseiro. As duas mulheres dialogam, tergiversam num primeiro momento, afrontam-se no seguinte; não há concessões. O cheiro da terra úmida é um lenitivo, ainda que os espíritos não se fundam e o tempo passe de forma lenta e agoniada.
O ruído de um carro parando no portão; uma decisão é necessária. Ela respira fundo, corpo teso.
A chave rodando na fechadura e depois a porta batendo, sem ser mostrado o cuidado de se evitar isso. Um suspiro parece libertá-la de mil fantasmas e a alivia.
Passos na escada, sem pressa e sem justificativas. Tensa, olhos cerrados, não quer encará-lo nesse primeiro momento. Noite quente e calma. A decisão já está tomada. O lençol é jogado longe. Deitada, braços abertos sobre a cama, ela é a cruz de carne de seu próprio sacrifício.