CAMINHOS DE PAPEL

sexta-feira, maio 26, 2006

SEM COMENTÁRIOS

Minto, logo, existo
Bill Clinton presidiu os EUA num dos mais períodos mais prósperos e pacíficos de sua história, zerou o déficit público, tinha grande prestígio nacional e internacional e sólida aprovação popular, era dono de irresistível carisma e notável orador. Jamais foi acusado de roubar nada nem de ser complacente com a corrupção, mas, mesmo assim, sofreu um processo de impeachment, foi condenado na Câmara (com muitos votos de seu próprio partido) e só se manteve no cargo, por votação apertada, no Senado. Só porque mentiu.Não mentiu sobre questões de Estado ou segredos militares, sobre concorrências ou superfaturamentos, sobre lobistas, fundos de campanha ou companheiros ladrões -mentiu sobre um patético romance com uma estagiária gorduchinha, mero assunto de família. Mas foi condenado implacavelmente por republicanos e democratas na Câmara, apesar de não haver nenhuma campanha na mídia, nenhum clamor popular e nem um estudante de cara pintada nas ruas de Washington exigindo a sua saída. Só porque mentiu.Só? É que lá eles acreditam que quem mente agora mente sempre e não merece confiança. É rigoroso, mas faz sentido, não é? Principalmente na administração pública.Já aqui, os delúbios, silvinhos e seus chefes, os mensaleiros e seus banqueiros e empresários, os sanguessugas e os advogados dos bandidos, todos mentem deslavadamente na nossa cara, humilham nossa inteligência, desmoralizam nossa honestidade e nos provam que, entre nós, a mentira é não só tolerada como recompensada. Eles anunciam a verdade brasileira: minto, logo, existo.Não sei se já houve mais corrupção em outro tempo, mas com certeza nunca na história deste país se mentiu tanto. Graças a Deus Lula não mente como Clinton.
Nelson Motta, Folha de São Paulo, 26/5

sábado, maio 06, 2006

CONTA-GOTAS

O ruído da vidraça sendo estilhaçada ainda ecoava em sua cabeça, misturado com a voz irada da mãe: “Agora você vai se entender é com o teu pai, moleque”. O menino, agachado junto ao tanque no fundo do quintal, teve um momento de raiva ao pensar na bicanca dada na bola, mas voltou a se encolher ainda mais e puxar os joelhos de encontro ao peito, ao ouvir o clique do trinco do portão e pensar no rabo-de-tatu dependurado atrás da porta da cozinha.
------
------

A praça de alimentação do shopping estava cheia e as duas garotas sairam da sorveteria no tagarelar próprio de pré-adolescentes, sem notar a mulher apressada e carregada de pacotes no meio do caminho. Uma batida num braço e a bola de sorvete se esparramou no chão. A matrona seguiu seu caminho, sem culpas ou desculpas, enquanto a menina olhava com olhos de morango para aquela massa definitivamente perdida no piso brilhante do salão.
------
------

A mesa está arrumada com esmero. Os pratos de porcelana ladeados pelos talheres de prata, cuidadosamente alinhados. Os guardanapos de linho aguardam em suas dobras disciplinadas e o champanhe repousa no balde em meio do gelo quase todo derretido. No centro da mesa o castiçal suporta a vela ainda não acesa. Na toalha impecavelmente branca, a mancha de uma lágrima.
------
------

As portas do vagão se abriram e ela foi a primeira a entrar. Acomodando-se no assento defronte ao meu, colocou as mãos sobre os joelhos colados. A barra da saia curta deixava à mostra um palmo de coxa tão sugestivo quanto aquele que estava oculto.
O metrô lotou e uma parede de barrigas, nádegas, pastas e sacolas trouxe-me de volta à realidade.
------
------

Ele jogou o robe sobre uma cadeira, deixou os chinelos em posição de recebê-lo pela manhã e enfiou-se sob as cobertas. Ela, recostada no travesseiro lia uma revista. A luz tímida do abajur focava caras de famosos e ilhas inatingíveis. Com um suspiro jogou as páginas abertas sobre o tapete ao lado, olhou para o marido que começava a ressonar e apagou a luz.
------
------

Seu olhar se fixou no porta-retrato em cima do móvel mostrando a figura sorridente da mulher abraçada ao neto. Sorriu tristemente enquanto o vento balançava a cortina da janela deixando entrever lá fora, no quintal, o varal sem roupas.
------
------

segunda-feira, maio 01, 2006

O PÃO NOSSO



Com um tapa, ela desligou a tecla do rádio-relógio calando-o antes que acordasse o filho que dormia no sofá-cama, na sala ao lado. “Coitado, ele chega tão tarde da Faculdade”, pensou. “Deixa ele dormir mais um pouco”.
Levantou-se, procurou pelo chinelo de lã ao lado da cama, vestiu o peignoir amarrotado e foi para o banheiro. Fez um xixí discreto, passou um pouco de água no rosto enrugado e voltou ao quarto. Vestiu a roupa de todos os dias e foi para a cozinha em passos de gato. Abriu o guarda-comida e depois de apanhar o porta-níqueis, dirigiu-se para a porta da frente.
Ainda estava escuro, mas pela rua passava uma procissão de sonâmbulos dirigindo-se ao ponto de ônibus. Foi até a padaria e depois de um bom-dia tão desanimado ao balconista pediu o de sempre: um leite “C” e dois pãezinhos.
Quando voltou à rua, já clareava. A Estrela-d’alva, como em todas as manhãs, desejou-lhe um dia de muita sorte.

* * * * *

Ela espreguiçou-se gostosamente sobre o lençol coberto de farinha, fazendo com que uma névoa onírica a envolvesse. Instintivamente enrodilhou-se pedindo calor e aquele eflúvio que se desprendia dos pães quentes a extasiava. Um estalar de dedos e a porta do forno à sua cabeceira se abriu e seu corpo foi coberto por dezenas, centenas de pães franceses, pães doces, pães suíços, pães recheados, pães corninhos, pães de sêmola , pães de ajunta, pães ázimos, pães de munição, pães pretos, pães-de-ló, pães ciabatta, pães de centeio, brioches, broas, sonhos, sonhos, sonhos...
Naquele instante que antecede ao adormecer, sentiu transformar-se num pão com sentidos consentidos mas que seu homem não sabia saborear.

* * * * *

Olhou disfarçadamente para os dois homens que haviam pedido um cafezinho. Lembrou-se que no dia anterior eles também estavam na padaria e, ainda que parecesse estranho, um deles pediu que pusesse um pouco de pinga no café. “Isso é coisa de marginal”, pensou ela enquanto aguardava para ser atendida. Mas não conseguia desprender a atenção daqueles dois sujeitos taciturnos, um indagando com monossílabos e o outro apenas balançando a cabeça, sim ou não. Um deles olhou em sua direção fazendo um arrepio percorrer-lhe a espinha. Depois, comentou qualquer coisa com o outro que balançou a cabeça afirmativamente sem mesmo tirar os olhos da xícara. Quando se dirigiram ao caixa, o que havia feito o comentário enfiou a mão no bolso. A mulher viu os pãesinhos voando ao redor de sua cabeça, soltou o saquinho de leite enquanto as pernas lhe faltavam e caía estatelada naquela poça branca, com os olhos arregalados. Nenhum dos presentes suspeitou que era um olhar de pavor.

* * * * *

A fila deu mais alguns passos. Naquela hora da manhã era sempre assim; todos pareciam querer comprar pão no mesmo momento e o balconista não era exatamente um modelo de eficiência. Uma bengalinha e um saquinho de leite. Três pãezinhos e um saquinho de leite. Tudo mecanicamente. Chegada a vez, ela pediu o de sempre e ao toque nas mãos do pão quentinho, sentiu reviver. Ela, que tanto precisava de um pouco de calor.

* * * * *

— Esse não. Está meio queimado.
— Não é queimado, freguesa. É assim mesmo. Ficou um pouquinho a mais no forno.
— É que eu não gosto. Prefiro o pãozinho bem clarinho.
— A senhora é quem manda, freguesa.
— Tem leite?
— B ou C?
— B. O outro é muito aguado.
— Se engana, freguesa. Leite C só tem menos gordura.
— Mas prefiro o B. Enxuga o saquinho por favor. Senão vai molhar minha roupa.
— Pode deixar. Em ponho numa sacolinha.
— Quanto é?
— Dois e quarenta.
— Tem troco pra cinquenta?
— Não tenho, não. Amanhã a senhora paga.
— Obrigada. Até amanhã, seu Manoel.
Que merda, pensou o comerciante. E lá isto é vida?

* * * * *

Direitos? Que direitos? A mãe insistia na idéia que recebera da mãe e esta, por sua vez, da mãe. Por toda a árvore genealógica vingava o princípio de que mulher era pra cama e mesa.
Quem ficava na cama e quem cuidava da mesa? O marido ainda roncava livre de culpas enquanto ela calçava as botinhas de plástico, pegava o guarda-chuva e ia comprar o pão feito pelos homens.

* * * * *

Quando o jovem sobrinho do padeiro a atendeu, ela sentiu arrepiar-se. Robusto, bonito, trazia nas maçãs do rosto o rubor de um camponês de Trás-os-Montes. Ao receber das mãos dele o pão ainda quente, suspirou fundo segurando delicadamente aquele símbolo fálico e perguntando-se se aquela vermelhidão era de uma vitalidade pronta para explodir ou de acanhamento genuíno.
* * * * *