CAMINHOS DE PAPEL

domingo, maio 29, 2005

A DAMA DE VERDE


Depois de colocar três pedras de gelo no copo, fiz menção de preparar um outro. Quieta em seu canto escuro, ela acenou recusando a bebida. Preferia ficar sentada ali, calada, pernas cruzadas e pensativa, fumando seu cigarro cuja brasa ganhava vida a cada tragada.
Derramei o uísque que se acomodou tranqüilo entre os cubos e depois fui até a escrivaninha. Colocado sobre o móvel, o copo deixou as gotas que escorriam pela parede de vidro formarem uma pequena poça sobre o verniz. Fiquei a olhar para a máquina de escrever, vazia, pensando no que fazer. Ao lado da velha Ollivetti, havia algumas folhas em branco, de onde extraí uma e coloquei atrás do rolo da máquina.
Girei-o e o papel apresentou-se a mim, virgem esperando pelo defloramento, mas sem me excitar. Faltava aquele tesão quando os dedos, no momento certo, se transformam nos portadores do desejo.
Ela pigarreou. Percebi que me olhava ao mesmo tempo que acendia outro cigarro. Balancei a cabeça negativamente, em nada incomodando-a.
Inquieta, mexeu-se na poltrona, mas não se levantou. Na esteira de uma baforada vieram algumas palavras:
— Vai tentar de novo?
Não respondi. Iria tentar mais uma vez, sim. Iria escalar o rochedo de Acapulco e me jogar lá de cima. Iria bater com força na água, emergir e perguntar: “— Pra quê?”
A coragem irresponsável é a pior delas. Salta-se sobre o teclado, cai-se sobre ele e os respingos são folhas e folhas amassadas jogadas no cesto de papeis.
Depois de apagar o cigarro no cinzeiro de coluna e mudando de idéia quanto à bebida, ela levantou-se e foi preparar seu próprio uísque. O tilintar do gelo no copo não foi suficiente, contudo, para tirar-me da apatia.
Sentada novamente na penumbra, ela passava a imagem de um espírito a me vigiar, sempre cobrando:
— Vai tentar de novo? — insistiu.
Suspirei, com o acompanhamento de um gole:
— Como a invejo... Outro gole maior e completei: — Isso também acontece com você?
— Ah, sim. Uma, dez, mil vezes. Já perdi o número de vezes em que fiquei como você está agora. Olhava o teclado e as letras pareciam desordenadas, sem significado. Acontece.
— Mas você sempre achava o caminho. Seus livros estão aí para atestar isso.
Ela riu gostoso:
— Você é um tolo. Penei para que meus livros enchessem as estantes. Procurei soluções onde não havia soluções; tive de criá-las. Procurei temas onde eles já estavam desgastados; foi preciso recriá-los. E se fosse medir meu trabalho a partir do consumo de uísque, riu, provavelmente teria morrido de cirrose antes.
Girei a cadeira e procurei localizar seus olhos na penumbra. Ela os escondia muito bem; talvez não gostasse de ser confrontada.
— Você é tão conflituosa quanto seus personagens.
— Isso eu sou mesmo. Nós brigamos o tempo todo. Gosto de explorar suas fraquezas; não lhes abro o caminho da redenção assim tão facilmente. Eles é que precisam achar força para se encontrar.
— E acabam mostrando-lhe o caminho.
— Exatamente, meu caro. Eles trabalham para mim, não o contrário.
E era uma verdade. O personagem tem sempre que sair na frente do autor e abrir caminhos não explorados. Contudo, devem estar sempre ao alcance da vista, ou o autor é que correria sem rumo. Ela parecia saber o distanciamento certo, nem mais nem menos, sempre pronta a explorar o que eles lhes mostrassem.
Levantando-se, foi até a janela espiar o sol poente. Saída das sombras, seu vestido verde parecia criar vida. Brilhava e a fazia brilhar.
— O verde lhe cai bem, — disse-lhe num cumprimento.
— Gostei de trabalhar com essa cor, — respondeu bebericando o scotch.
— O conflito do verde, eu me lembro, resultou numa solução belíssima. A alegria da vida sobrepondo-se ao compromisso com a morte. Comme il faut.
Ela não disse nada. Não precisava. Ambos sabíamos que, mesmo naquela solução aparentemente feliz, encerrava-se um mundo de incompatibilidades. A sina de seus personagens era, e sempre foi, essa.
Por algum tempo, ficou olhando para o grande círculo vermelho descendo para lá do fim do mundo. Suas palavras seguintes foram de ordem menos filosóficas:
— Já pensou em usar um computador?
Ri, numa resposta lacônica e ao mesmo tempo idiota:
— Com textos já preparados eletronicamente...
— Por questões práticas, mesmo. Veja só: até o papa se utilizou da Internet para pedir perdão para as cagadas que a Igreja fez.
Desta vez, ri livre:
— Você tem classe para falar palavrões. Aliás, ninguém fala merde melhor do que você.
— Sou uma puta erudita, já esqueceu? — E riu, completando: — Ah, “seu” Durval... se você visse no que deu a sua filha...
Fiquei calado, sorrindo, balançando a cabeça mostrando um não contraditório, pois me agradava sua forma de botar os sentimentos para fora. Voltei a encarar a velha máquina:
— Não sei como entrar nos conflitos alheios se não consigo resolver os meus.
Ela se tornou séria:
— É mesmo? E quem te disse que você precisa se livrar dos seus conflitos para encontrar os dos outros? Nunca te passou pela cabeça que o que você chama de seu conflito pode ser o mesmo de seus personagens? Ainda que vocês devam crescer separados, estão, ao mesmo tempo, juntos, entende? — Parou de falar para uma bebericada, mas voltou com toda a carga:
— Juntem as cabeças. Façam um brain storming. Fujam do melodramático. Critiquem e critiquem-se. Uns ajudando aos outros. E você, com certeza, acabará achando o caminho para depuração de seus textos.
— Mas eu penso por eles.
De repente, a percebi nervosa. Sabia que, quando necessário, impunha-se. Mas não era uma imposição de cima para baixo; era na horizontal, olho no olho. Tinha uma espada nas mãos, mas permitia que seu oponente também portasse outra.
— Não me faça ouvir isso de novo. Você pensa com eles.
Verdade das verdades, admiti. De uma certa maneira, estava unido a eles. Se houvesse harmonia — fosse o caso e ela apareceria sem remorsos de minha parte — não poderia soar falsa, mas haveria uma seta indicando o caminho de um conflito inerente a todos nós, autor e personagens. Contraditório ou não, há a possibilidade da harmonia conflituosa.
Se houvesse harmonia, não seria minha morte. Para ela, talvez. Sempre fora uma rebelde com muitas causas, alimentando-se das incompatibilidades que criava. Mas seria o epílogo não desejado para seus dramas. Não haveria espaço para a paz eterna, mesmo para alguém fadado à eternidade.
Meus dedos bateram algumas letras num começo de qualquer coisa. Logo parei e fiquei com os cotovelos apoiados na escrivaninha, segurando o queixo.
A presença verde e onírica dela se espargia pela sala. Um espírito que sintetizava todas as cores numa só flutuava pelo ambiente, passando por cima de tensões, mas comungando com elas. Revirando desamores, mas neles procurando energia.
Deixei o papel esperando. Uma olhadela cúmplice para ele e depois fui até a janela olhar o pôr-do-sol.
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conto premiado pela Academia de Letras de Maringá - 2002
Fundação Biblioteca Nacional - Escrit. de Direitos Autorais nº 288.438
permitida reprodução desde que mencionada a fonte

quinta-feira, maio 26, 2005

LIVROS

"LIVROS NÃO MUDAM O MUNDO, QUEM MUDA O MUNDO SÃO AS PESSOAS. OS LIVROS SÓ MUDAM AS PESSOAS".

MÁRIO QUINTANA

sexta-feira, maio 20, 2005

FRAJOLA E PIU-PIU


Ainda que a voz do povo afirme que gosto não se discute, tenho direito aos meus mesmo que possam ser discutíveis. Se compreendidos, melhor.
Diriam que não é normal ler o jornal do fim para o começo. Mas eu gosto de fazer isso, pois ao que me consta não estou alterando a ordem dos acontecimentos.
Gosto de bolacha maizena molhada no leite. Frio, de preferência.
Gosto de ouvir as tiradas de humor do Salomão Schwartzman, no seu Diário da Manhã, ainda que o meu humor é que nem sempre seja lá essas coisas logo cedo.
Ao contrário dos normais, gosto de comer a fruta depois do café matinal.
Ao acordar, gostava de abrir a porta da cozinha e ser festejado pela Bruna abanando o rabo de bom-dia. Gosto de lembrar que em seus treze anos de vida nunca descurou desse compromisso.
Encarar o fogão também me dá prazer. Faço um cação com legumes abafados no vapor, que já foi elogiado por várias pessoas. Mas nunca me considerei um chef.
E quem vai ao fogão, vai também à feira-livre. Gosto mesmo é de encerrá-la na barraca dos imperdíveis pastéis de Dona Mieko.
A tarde eu reservo para escrever alguma coisa pelo computador. Logo eu, que até há pouco tempo atacava de cronista na minha Olivetti portátil, inseparável companheira de guerra. Mas gosto das inovações.
Da escrita, vou para um passeio virtual. Ainda me dá um prazer imenso receber cartas de papel. No entanto, aos poucos vou entrando no século 21 e já estou até gostando de receber e-mails. Dirão vocês, pôxa, que cara atrasado; desde quando internet é novidade?
Curto assistir a desenhos do Piu-Piu e Frajola. Já gostei dos do Pica-pau, mas com a dublagem ficaram chatos. A voz esganiçada de Grace Sttaford era o seu charme.
Gosto de finalizar a tarde esparramado no sofá e ouvindo Schubert ou Mahler. De olhos fechados e com um copo de leite na mão. E sem bolachas para não sujar o tapete. Se não for esse CD, pode ser outro, de Mônica Salmaso e sua voz ligeiramente rouca e de uma musicalidade incrível (já a ouviram cantando Menina do amanhã de manhã?). Mas também pode ser Elis e Atrás da porta. Pura fascinação.
Gosto de brincar com os netos, mesmo sabendo que meu fôlego acaba bem antes que o deles.
Gosto de ver a luz do sol passando através do vidro canelado da janela da cozinha, repartido em tiras e iluminando o mármore molhado.
Gosto de receber a companheira quando chega em casa, cansada no seu ofício de ensinar, e dizer-lhe que amanhã será um outro dia.

sábado, maio 14, 2005

FIM DE NOITE


Ele jogou o robe sobre uma cadeira, deixou os chinelos em posição de recebê-lo pela manhã e enfiou-se sob as cobertas. Ela, recostada no travesseiro lia uma revista. A luz tímida do abajur focava caras de famosos e ilhas inatingíveis. Com um suspiro jogou as páginas abertas sobre o tapete ao lado, olhou para o marido que começava a ressonar e apagou a luz.

segunda-feira, maio 09, 2005

ECONOMIA PARA PRINCIPIANTES


Minha entrada no mundo da economia deu-se de forma pitoresca e insuspeita, considerando-se que na época eu era um pirralho de seus nove, dez anos. Um tio meu presenteou-me com um cofrinho para que eu poupasse as minguadas moedas que ganhava de vez em quando.
Muitos daqueles de minha idade nem lembrarão do que era o Banco do Canguru-Mirim, mas essa foi a ferramenta que ganhei para aprender a conhecer o misterioso universo das finanças. Consistia num aparato do qual constava um canguruzinho de matéria-plástica, segurando uma bandeja. Quando se colocava uma moeda nessa bandeja, o bichinho se inclinava e a despejava num cofrinho, cuja abertura coincidia exatamente onde o níquel deveria cair. Era, convenhamos, uma forma divertida de poupar, embora eu nem lembre mais que fim levou o pecúlio ali acumulado.
Poucos anos depois, já freqüentando o ginásio, foi minha mãe que meu deu mais um incentivo. Toda segunda-feira entregava-me uma nota de cinco cruzeiros para que eu comprasse o lanchinho de mortadela da hora do recreio. Junto, a recomendação: se gastasse todo o dinheiro antes da sexta-feira, ficava sem aquele delicioso acepipe. Renegando sorvetes e doces, conseguia chegar ao fim da semana com uns trocados que, com um reforço da amorosa genitora, garantia a matineé dos domingos no saudoso cine Imperial.
Durante toda a vida criei e detonei várias cadernetas de poupança, pois meus conceitos de economia sempre diferiram daqueles aplicados pelos profissionais do ramo, que conseguem fazer o balanço de uma estatal saltar do vermelho para o azul num estalar de dedos.
Com uma freqüência que deveria ser bem menor, às vezes vejo nos jornais que nossos políticos se mobilizam para (desprezando esse detalhezinho técnico chamado índice de inflação) reajustarem seus justos proventos. Não que eles não mereçam; longe de mim pensar tal maldade. Apenas penso que muitos desses senhores, alguns até mais provectos do que eu, jamais, quando meninos, sentiram o prazer de criarem suas poupanças colocando uma moedinha na bandeja do canguru-mirim.
Sanduíche de mortadela na escola, então, nem pensar.



terça-feira, maio 03, 2005

A FENIX QUER VOAR

Quando a Orquestra Sinfonia Cultura foi extinta, em dezembro, pela Fundação Padre Anchieta, o clamor foi generalizado. A classe musical protestou veementemente, mais de dez mil assinaturas foram enviadas àquele orgão, porém o fato consumou-se.
Em janeiro, já desvinculada da Fundação, a orquestra fez uma apresentação de agradecimento ao público que lhe foi fiel nos cinco anos em que se apresentou no auditório do SESC Belenzinho, superlotando aquele local. Até onde sei, foi a primeira fez que uma orquestra foi aplaudida de pé, antes do espetáculo, à sua entrada ao palco.
Mas não foi a última. Graças ao mesmo SESC, que lhe dará apoio até o mês de julho, a orquestra, agora sob o nome de Sinfonia São Paulo, reapresentou-se no mesmo local e novamente foi aplaudida de pé quando da entrada ao palco, pelo mesmo público que entende não poder deixar se dissipar no ar o esforço de ótimos músicos conduzidos por Lutero Rodrigues. Ao contrário do que se pensa nos corredores e gabinetes do poder, existe, sim, público para tal tipo de espetáculo, mesmo (ainda que isto soe como preconceito), na Zona Leste de São Paulo, carente não só de cultura, mas de muitas outras coisas.
No entanto, essa sobrevida se estenderá apenas até a metade do ano. Daí para a frente, sua existência ficará na dependência de se encontrar patrocínio.
Quanto a apresentação em si, Lutero Rodrigues conduziu a Sinfonia Cultura com toda a arte que possui levando a um público emocionado, Brahms, nas Danças Húngaras nºs. 1, 3 e 10, além do Concerto nº 1 para piano e orquestra.
O domingo já estava completo.