CAMINHOS DE PAPEL

quinta-feira, janeiro 25, 2007

CONSIDERAÇÕES À HORA DO JANTAR

Este é um dos dez textos que compõem a Coletânea Osman Lins de Contos 2006, editada pela Fundação Cultural do Recife, e escolhidos entre 521 concorrentes.
CONSIDERAÇÕES À HORA DO JANTAR (c)
( ! ) Isso lá é vida? Trabalhar o dia inteiro, chegar em casa, jantar e assistir televisão. Ah, se não fosse o faroeste... Chego aqui caindo aos pedaços, janto um arroz com feijão que vejo há quase vinte anos e ainda tenho de ouvir as reclamações dessas duas como se eu fosse Deus e pudesse melhorar a vida delas. Humpf... não consigo melhorar nem a minha... Se pudesse, começava caindo fora daquele emprego de merda, que só me enche o saco. O dia todo vendo o torno cuspir peças, uma atrás da outra, que só servem para enriquecer “seu” Armando e deixar alguns parvos contentes. E não é que os palhaços ainda saem da fábrica contando piadas e rindo? Como conseguem?
( = ) Pela cara do Manoel já posso adivinhar que teve um dia de cachorro. Mais um, para variar. Quem vive há tanto tempo com um homem percebe até nos mínimos gestos quando as coisas não vão bem. Como agora: do jeito que ele fica empurrando o feijão e o arroz, pra lá e pra cá, já sei que está de cabeça quente. Nem vou perguntar; melhor deixar do jeito que está.
( ) Ah, se eu pudesse cair fora desta casa, morar sozinha... Mas quem é que vai meter na cabeça dessas duas múmias a idéia de eu viver por minha conta? Se eu falasse nisso, o velho ia me encher de porrada, “filha a gente cria pra arranjar um bom marido e constituir família”, e estufa o peito quando diz isso. Está crente que é o dono da verdade, que mulher é pra prendas domésticas. Que nem a burra dessa daí. Nasce, cresce, quando pensa que tá virando gente vem um pé-rapado qualquer e com uma boa conversa ganha a idiota. Aí casa e entra pra lista das donas-de-casa. Donas de quê? Essa daí só tem de seu a dureza dessa vida besta.
( = ) Mas tem suas vantagens. Quando está assim é sinal que não irá me procurar, de noite. Ainda bem, porque estou morta de tanto trabalhar como uma mula de carga. Não é brincadeira, mas parece que lavei a roupa de um batalhão inteiro. E somos só nós três; nunca vi gente pra sujar roupacomo esses aí. Se ao menos a Neuzinha me ajudasse... Mas, agora, com esse negócio de trabalhar fora... Quer ser independente. Ela ainda vai ver essa independência se acabando num tanque cheio de roupas e limpando merda de nenê. Bem, ao menos ainda ajuda um pouco nas despesas e tem um dinheirinho de seu, pra gastar. E eu? Até que gostaria de ganhar algum, mas se falasse em trabalhar fora, esse animal me cobriria de pancada. Nem sei como ele deixou a Neuzinha...
( ! ) Olha só essas duas. Caladas como dois postes. Mulher é assim mesmo. Sabe Deus o que conversam quando estão só elas. Corto o meu saco se a Isabel já não fez a cabeça da Neuzinha a meu respeito. Deve ter falado pra ela que o pai só anda de mau humor, não dá dinheiro em casa... É verdade que esse dinheirinho não é lá grande coisa, mas é suado, é honesto e bem ou mal, vamos vivendo. Será que preferiam que eu fosse como aqueles mandriões do bar? Todas as tardes dizendo “como é, Mané? Que tal uma sinuca? Chega aí pra uma cervejinha”. O que eu ganho vindo direto pra casa, é isso: carrancas. E uma cerveja, que é bom, só aos domingos e olhe lá. Ah, se um dia eu ganhasse na loteria, virava tudo de pernas pro ar. Essa história de que dinheiro não traz felicidade é consolo daqueles que erraram a loteria por um número.
( = ) Que posso fazer? Pra comprar um vestidinho nas Pernambucanas tenho de ficar alisando essa besta por um mês, pegar de bom humor. Do contrário, é aquela cantilena: “vestido novo, pra quê? A gente nunca vai a lugar nenhum...”
( ) Comigo vai ser diferente. Posso até demorar pra sair daqui, mas quando sair, vai ser em grande estilo. O cara vai ter de ser rico, bonito. O amor vem depois, com o tempo. Eu sei como são essas coisas...
( = ) Paciência, Isabel. Não era você quem estava louca pra casar? Se soubesse... O Manoel até que é um bom sujeito, às vezes. Mas, qual é a mulher que quer um bom marido “às vezes”? Quando ele não é, só Deus sabe o que tenho de agüentar. Pior é que não tenho nem com quem desa-bafar. A Neuzinha é uma alienada. Quando não está naquele escritorinho de contabilidade, passa o tempo lendo essas ridículas fotonovelas. Nem de escola quer saber. Não dá mesmo pra conversar. E depois, ainda ia piorar mais as coisas, ficar contra o pai, coisa e tal. Paciência, paciência...
( ! ) Amanhã, vou ter uma conversa com o “seu” Armando. Ele tem de entender que precisa dar uma melhorada no meu ordenado. Com esse papo de livre negociação, o cacete, acho que está é me enrolando. E a situação aqui em casa, cada vez mais preta. A Isabel só chora, pedindo dinheiro pra fazer a feira. A incompetente da Neuzinha pensa que recebo rios de dinheiro. Ainda bem que arranjou esse emprego e está pesando menos no bolso. Mesmo assim, as coisas não estão boas, não.
( = ) Espero que a água volte logo. Lavar essa pilha de louça no balde é um tormento. Por que essa porcaria de água não acabou antes de eu ter lavado a roupa? Pelo menos não estaria neste bagaço. Pobre, nem nisso dá sorte.
( ) Que dia... Como se não bastasse ter de agüentar aquele papo cretino das meninas, chego em casa e encontro esse clima de velório. Pior que depois disso a gente ainda tem de aturar o Jornal. Se ao menos depois desse pra assistir a novela... O diabo é que o velho não perde a sessão bang-bang, nem que a vaca tussa. Que pobreza, meu Deus! Casa com uma televisão só, não dá. Na minha, eu vou ter TV até no banheiro.
( ! ) Há quanto tempo não tomo um vinho? Sorte que de vez em quando vamos pra casa dos pais dela. O velho Nogueira, malandrão, é que sabe viver a vida. Só toma Chatô Duvaliê. Pelo menos ele não é regulado. Faz questão que eu acompanhe em cada copo. Quem sou eu pra rejeitar? Por outro lado, o maldito não nega a raça; está sempre a tirar uma casquinha comigo: “Manoel, Manoel, tu não sabes aproveitar a vida. Precisas viajar. Não tens saudade da terrinha?” O filho da puta sabe muito bem que ganho uma merda de salário e vem com essa conversa pra cima de mim, só pra me humilhar. Se eu fosse como ele, que enriqueceu explorando aqueles cortiços, estaria bem melhor agora. Deixa estar. Quem mandou ele me dar a filha única? O dia que aquele diabo bater asbotas, ponho as mãos naquele dinheirão todo. Mas, azarado como sou, é capaz que eu vá antes daquele aldrabão.
( = ) Já vi esse sorriso na cara do Manoel outras vezes e nunca, esses anos todos, consegui saber em que estava pensando. De uma coisa tenho certeza: não é por causa da comida; mesmo comendo como um morto de fome, posso esperar sentada por um elogio dele.
( ! ) Coitada da Isabel. Eu nunca elogio sua comida. E olha que este picadinho está uma delícia. Uma delícia mesmo!
( = ) Que nojo!...
( ) Parece um porco.

quinta-feira, janeiro 18, 2007

ELES ESTÃO INDO EMBORA


De vez em quando, passo aqui pelo meu blog para desabafar contra o estado de coisas que tem envolvido nossa pátria mãe gentil. Está ficando redundante chutar sempre o mesmo balde e encontrar ressonância zero em quem de direito. Afinal, políticos continuam politicando, estradas (e ruas) continuam afundando, corruptos continuam corrompendo e bandidos continuam andando por aí, sem lenço e sem documento, mas com um fuzil AR-15 nas mãos.
Já que é assim resolvi mudar o foco destas linhas depois de ter assistido, ontem à noite, ao show do SESC Vila Mariana, onde Paulo Vanzolini foi homenageado e muito bem interpretado pelas cantoras Márcia e Ana Bernardo, esta, filha de Arthur Bernardo, um dos fundadores dos Demônios da Garoa.
Eu iria chover no molhado se começasse a falar da genialidade do homenageado que, com sua indefectível cervejinha na mão e sentado à mesa, contribuiu com tiradas de humor e inteligência.
Vanzolini, como se sabe, tem oitenta e três anos de idade e, gostemos ou não, aproxima-se do fim de um ciclo no qual soube se valorizar e cultivar valores muito caros a ele e a todos nós.
Isso me levou a refletir sobre o fato de que muitos artistas de seu nível, mas nas mais diversas atividades do nosso cotidiano, também irão embora algum dia. O mais preocupante, entretanto, é que essa matéria prima não está sendo reposta com a mesma velocidade em que se vai. Pelo contrário, proliferam exemplos de mau gosto, ignorância e falta de educação.
Tudo bem. Nem os antigos mestres da música clássica escaparam, algum dia, de produzirem uma obra menor, não coadunante com sua genialidade. O problema é que, nos dias de hoje, obras menores é que não faltam. E bota menor nisso.
Os grandes empresários (sem ter nada de grande) visualizam uma potencial estrela (leia-se, mina de ouro) e jogam todas suas fichas nela, apoiados por uma mídia estupidificante onde o lucro é a meta dessa empreitada. Ligamos a TV e deparamos com deprimentes programas de auditório, onde a deusa Euterpe é massacrada por pagodeiros e loiras rebolantes, por bondes de funkeiros ou por novos hillbillies, caipiras que nunca pisaram o barro, a não ser o de suas fazendas compradas graças a seus CD’s.
Se isso tudo existe, é porque há ressonância no mercado. A população caminha bovinamente, sendo dopada cada vez mais e não só relativamente ao meio artístico-cultural. Em todos os aspectos da vida cotidiana nota-se o aprofundamento da anestesia que estão nos aplicando e que, seguramente, resulta no comportamento da coletividade.
O sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu recentemente, num artigo na Folha de São Paulo, que a perda de valores religiosos e tradicionais, por não serem substituídos por valores humanistas e cívicos, está tornando a sociedade brasileira uma das mais destituídas de ética do mundo. Impera, da cúpula à base, o espírito da malandragem.
O que escrevi acima, é apenas um dos aspectos da gigantesca fratura que está ameaçando tombar a nossa sociedade para dentro de um fosso de onde dificilmente se reerguerá. Se conseguir fazê-lo, contudo, será às custas de muito mais sacrifício do que se necessitaria, agora, para deter essa avalanche de mediocridade que nos assola.
Resta saber se nós queremos reagir. Está me parecendo que a tática da acomodação ganha mais espaço a cada dia.
Os mestres estão mesmo indo embora. Pudera, o que poderiam eles fazer quando se liga a TV e damos de cara com o Caldeirão do Hulk anunciando um CD intitulado Pancadão?

terça-feira, janeiro 02, 2007

NÃO FALTAVA MAIS NADA. OU AINDA VEM MAIS POR AÍ?

JOGO DA FRONTEIRA

Quando nasceram meus filhos, isso lá pelo começo da década de 70, prometi a mim mesmo que tudo faria para deixar-lhes uma herança de elevado valor moral e que resultasse na formação de seu caráter. Hoje, posso dizer que me orgulho de ter conseguido isso e, principalmente, ver que eles repassam a seus filhos tais valores.
Mas, sabemos, o mundo não é cor-de-rosa e, neste nosso país, tais conceitos de integridade parecem desmoronar mais e mais a cada dia que passa.
Ao ouvir na Rádio Jovem Pan AM, hoje, no Jornal da Manhã, comentários do jornalista e advogado Joseval Peixoto sobre o "Jogo da fronteira", brinquedo das Indústrias Estrela, fiquei, num primeiro momento, estarrecido. O brinquedo nada mais é do que uma disputa entre jogadores, os quais devem, através de subornos, trapaças e outros engodos, fazer entrar no país produtos ilegais. Ganha quem conseguir burlar a fiscalização e trazer a mercadoria aqui para dentro da nossa pátria mãe gentil.
Lentamente, contudo, fui entendendo que não chega a ser uma aberração diante dos parâmetros de comportamento que temos observado nos dias de hoje. Contrabandear, subornar, levar vantagem, parece ter se tornado norma de conduta neste país.
Eu ainda me lembro do programa "Pim-Pam-Pum Estrela", dos primórdios da televisão brasileira. Ironizando, hoje se chamaria "Pum-Pum-Pum Estrela", mais adequado ao estado de coisas que acontece neste Brasil.
O que receberemos agora? Algum brinquedo chamado "Congressso Nacional"? Neste caso, as regras seriam simples: ver quem tem mais poder, quem pode barganhar cargos ou negociar propostas, ou então, desviar verbas, criar CPIs. A meta do jogo seria obter a absolvição e dar uma banana para o povo.
Poderiam criar, também, outros jogos, tais como "Crie sua ONG Fajuta", "Faça contabilidade paralela e engane o fisco", "Brinque de presidiário (em cadeia de segurança máxima) e comande quadrilhas" (que poderia se chamar, também, de "Gestão de Negócios a partir das celas do RDD).
Sinceramente, apesar das promessas que fiz naqueles longínquos anos, e mesmo com os resultados que obtive, sinto-me frustrado. Ganhei uma batalha, mas fica o indisfarçável sentimento de que perdi a guerra.