CAMINHOS DE PAPEL

segunda-feira, abril 18, 2005

WHISKI

É mesmo essa a grafia original: whiski. É o nome de um filme feito em co-produção pelo Uruguai, Alemanha e Argentina, retratando algumas pessoas, e em particular uma delas, mergulhadas numa rotina massacrante e cujos sentimentos petrificam-se de tal forma que as tornam insensíveis aos que as cercam, fazendo-as vazias e sem futuro. O filme não deixa de ser, também, uma metáfora do Uruguai de hoje.
Whiski é a palavra que dois fotógrafos pedem, em momentos diferentes da ação (assim como aqui no Brasil se pede aos fotografados que digam "xis"), para que os personagens pronunciem antes de serem batidas as fotos, pois força-as a um sorriso tão artificial quanto a alegria que parecem demonstrar naquele momento.
Esse filme foi exibido na última semana pelo CineSesc, que promoveu uma mostra dos melhores de 2004.
Quem puder, assista.

sábado, abril 16, 2005

...um poeminha

INTENÇÕES




COLOCOU O BOMBOM
NOS LÁBIOS ENTREABERTOS
DA NAMORADA.
E COMO QUEM ESPERA PELO INCERTO,
COM A LÍNGUA TIROU DOS DEDOS
VESTÍGIOS DE OCULTOS DESEJOS.









sábado, abril 09, 2005

CÍRCULOS

Renato saiu do bar com a cabeça rodando. Ipanema zunia à sua volta e ele subiu a rua tropeçando em pensamentos perdidos entre Júlia e Mariano. Caminhou até a beira da Lagoa e ali parou como se houvesse uma união entre aquelas águas e a de seus olhos.
Num gesto mecânico, pegou uma pedra e atirou-a nas águas. Seu olhar se fixou nos círculos formados na superfície e a seus pensamentos vieram as imagens de Júlia, Mariano e a dele próprio, nesse mesmo lugar, brincando de jogar seixos na água.
Conheceram-na no Bofetada, entre um uísque e outro. Vinda de uma paixão desfeita, insinuou-se entre ambos naquele que era um tempo de atenções recíprocas. Foi aceita com naturalidade, mesmo quando dormiu com um, com outro ou com ambos. Desde então, transmudaram-se em três pedras caindo juntas na água, formando círculos entrelaçados.
Tenso, Renato atirou com raiva outra pedra ao lembrar do inesperado casamento de Júlia e Mariano, sem outros avisos que não o das proclamas às quais poucos se atém. Sentiu-se machucado com tão inimaginável ato, mesmo admitindo nada a vir dela poder surpreendê-lo. O cerne da ferida, contudo, fora aberto por Mariano, a quem imputou uma traição.
Em raiva crescente, atirou à água um punhando de pedriscos. Ainda que visse círculos se misturando, a geometria realista, mais forte, mostrou-lhe cada qual a afastar-se de seu âmago.
As águas voltaram à sua calma contraditória e sussurraram a Renato ser o tempo de ele estabelecer seu próprio círculo, em cujo centro encontraria a paz.

segunda-feira, abril 04, 2005

O DOCE BÁRBARO

Tom Zé derruba as barreiras da lógica musical em seu show
RONALDO EVANGELISTA (COLABORADOR PARA A FOLHA)

Classificado como uma "opereta" por seu autor, o novo disco de Tom Zé, "Estudando o Pagode", já nasceu com certa inclinação teatral. No texto do caprichado encarte do CD, inspirado em libretos de ópera, cada canção vem com sua letra acompanhada de especificações sobre personagens, cenas e atos. Muitas possibilidades abertas para a transposição do disco para o palco, portanto. E, realmente, com todo um "mise-en-scène" para a apresentação de cada música, o que temos são músicos/atores literalmente interpretando as canções. E Tom Zé, catalisador frenético de idéias, vestido de mendigo, sambando, rindo, dançando, derrubando o microfone, enfiando o dedo no nariz, se fazendo de bobo e conquistando o público.Tomando como ponto de partida e inspiração o tema da segregação da mulher, a força do feminino e o preconceito contra o pagode, o compositor vai além e mistura religião, história, filosofia, Platão, Sócrates, o preconceito, o rock, a bossa nova, "Roliúde", Adoniran Barbosa, os méritos das estradas de ferro e o que mais surgir, em um fluxo de consciência que derruba todas as barreiras da lógica tradicional, inclusive musicalmente. Com instrumentos como guitarra, baixo elétrico, violão de sete cordas, teclados com sons de folhas de fícus, bateria, pandeiro e vozes masculinas e femininas, Tom Zé se permite criar, deixando tudo fluir e achando o espaço, a hora e o lugar de cada coisa. Nada é estático e tudo é permitido.Intelectual e pop, Tom Zé seduz o público com facilidade. A cada gesto, todos se entregam, riem, admiram. É o ponto culminante de um momento em sua carreira em que consegue encher um teatro, de um público que o entende e se diverte com seu senso de humor, que o considera genial. Isso, depois de muitos anos sendo o incompreendido, o esquecido, o "incomercial". E, se o caminho da volta foi feito pelos gringos, que primeiro lembraram da sua genialidade e o resgataram, é no Brasil que Tom Zé pode ser ele mesmo, que pode se apresentar e cantar para um público que entende as suas referências e que fala a sua língua. Um público que não o vê como algo exótico e estrangeiro, mas simplesmente mais um típico brasileiro excêntrico.Tom Zé aprecia (e cultiva) uma beleza mais bela, porque mais feia. É o belo errado, sincero, humano, espontâneo, com senso de humor. Sua música é doce, ainda que esquisita. Sua sensibilidade é feminina e as mulheres são grande parte do seu público. E agora são grande parte de suas músicas, na sua opereta. Na música de Tom Zé, não há espaço para diferenças, limites, definições. Ele desconstrói o que conhece, recria novos conceitos e subverte tudo. No palco, fala de si e explica suas inspirações. O personagem se mistura com o autor. O público compartilha a experiência da apresentação e se torna cúmplice.
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O texto acima, conforme mencionado ao início, foi publicado na Folha de São Paulo, de hoje, 4 de abril. Além do título que acrescentei (O DOCE BÁRBARO), mostra uma grande injustiça: não faz referência explícita à cantora Suzana Salles, cuja participação, numa perfeita simbiose com Tom, foi fundamental para elevar o show à altura que conseguiu.
Quanto ao espetáculo propriamente dito, acrescento apenas isto: se houver novas apresentações, não percam de jeito nenhum.