CAMINHOS DE PAPEL

quarta-feira, agosto 30, 2006

A CONSAGRAÇÃO DA MERDA

CLÓVIS ROSSI (Folha de São Paulo, 30 de agosto de 2006


A consagração da merda


Pegou e fez escola a sociologia política da merda, exposta inicialmente pelo ator Paulo Betti para justificar a crise ética do governo Lula. Betti disse, curto e bem grosso: "Não dá para fazer [política] sem botar a mão na merda".Uma semana depois, Lula repete, menos grosso, mas rigorosamente com o mesmo sentido: "Política a gente faz com o que a gente tem. Não com o que a gente quer". E, em seguida: "Maioria a gente constrói pelo que a gente tem ao nosso lado. Não pelo que a gente pensa que tem. Esse é o jogo real da política que precisou ser feito em quatro anos para que chegássemos a uma situação altamente confortável". Não é que seja novidade ou surpresa. Novidade é o fato de que quem se dizia monopolista da ética agora assume gostosamente a mais cínica versão do que é política. De quebra, desconstrói as versões anteriores, a da "conspiração das elites" e a do "fui traído", que todo mundo sabia que eram ficções, mas que foram sustentadas ao longo de toda a crise. Não houve traição, confessa agora Lula. Houve "o jogo real da política que precisou ser feito". Leia-se: o mensalão (para não falar em outras atividades, tipo sanguessugas, que também envolvem figuras graúdas do lulo-petismo). Compare-se o Lula de hoje com o Lula do seguinte trecho de seu discurso de posse: "O combate à corrupção e a defesa da ética no trato da coisa pública serão objetivos centrais e permanentes do meu governo. É preciso enfrentar com determinação e derrotar a verdadeira cultura da impunidade que prevalece em certos setores da vida brasileira". Pronto, está demonstrado o estelionato eleitoral praticado em 2002. Vai-se repetir agora, ao que tudo indica, mas já não como estelionato. O eleitor está informado que o presidente botou a mão na merda. Mas não se importa.

segunda-feira, agosto 21, 2006

DE GOIABAS E PRESIDENTES

Você já jogou bolinha de gude? E pião? Se respondeu afirmativamente, provavelmente é alguém nascido lá pela metade do século passado quando as crianças ainda não sonhavam com os chamados anos dourados, mas sabiam o que era “morrer sapateiro” ou “zuncar o pião”.
Isso fazia parte de minhas aventuras no caminho diário para a escola, jornadas povoadas de heróis e assombrações, animais ferozes e vilões.
Ah, eles existiam aqui mesmo, em São Paulo, quando a cidade começava a perder sua garoa. O rumo para a aventura era a centenária rua Siqueira Bueno, no Belenzinho, trilha explorada a cada dia no caminho para o Grupo Escolar Queiróz Teles. Ela ainda existe, é claro, mas não é mais a mesma. O asfalto, lojas de revenda de automóveis e até um hospital apareceram como invasores de um terreno que tinha seus donos: a molecada.
A rua era calçada com paralelepípedos (ou macacos, como eram chamados) que chegavam até o quarteirão de minha casa. Da esquina em diante era de terra mesmo, o que tornava possível cavar as quatro casinhas do jogo de bolinhas, dando ensejo a memoráveis disputas depois das aulas.
Também ficava nessa faixa o Mercado Municipal da Quarta Parada, onde volta e meia entrávamos para roubar azeitonas da banca do “seu” Nicola.
Por ser arborizada, poetas daquela época talvez dissessem ser aquela uma rua perfumada. Eu, a bem dizer, não notava perfume algum, principalmente perto da vacaria dos húngaros, família que se estabelecera numa chácara na esquina da Tobias Barreto, criando vacas e vendendo leite devidamente “batizado”. O que se sentia ali por perto, evidentemente não era nenhum perfume, mas um poeta sempre é capaz de achar que bosta de vaca é uma fragrância. De bonito, mesmo, só as roupas daqueles imigrantes que faziam questão de preservar sua identidade cultural, ainda que mesclada com um pouco da malandragem brasileira. Ou teria vindo de terras magiares o costume de botar água no leite?
A rua Siqueira era uma subidona e lá no topo, antes da virada da rua da escola, havia uma chácara quase abandonada, com um velho casarão. Na cabeça da
meninada o que valia mesmo era a imaginação e esta povoava com almas e fantasmas aquela antiga sede de fazenda, fincada de forma ainda imponente no meio de uma selva impenetrável. Nem mesmo o valentão da turma teve, algum dia, coragem de desvendar esse mistério. Ainda bem; teria acabado com o encanto morador em nossas mentes.
As goiabas, sim; eram reais e tentadoras. O velho caseiro que morava nos fundos desse terreno, as vendia para obter algum sustento. Nós, crianças, queríamos mesmo era provar de seu gosto e o fazíamos através de incursões furtivas, mas não tão profundas, naquele terreno proibido. Não tinha graça pedir ou comprá-las; perderia o espírito de aventura negociar as uvas de dezembro ou os caquis de março. Sabíamos que o gosto da fruta roubada sempre foi mais saboroso.
Depois, a escola. As inesquecíveis aulas com dona Inês, gorda e bondosa como deveriam ser todas as professoras. E foi num desses dias, a caminho do Grupo Escolar, que encontrei colegas descendo a rua, alvoroçados: “Hoje não tem aula. O Getúlio morreu”.
O Getúlio morreu? Isso significava para nós, moleques, que o jogo de bolinhas de gude começaria mais cedo e morreria “sapateiro” quem não corresse as quatro casinhas, ida e volta.
Fui para casa tirar o uniforme e encontrei minha mãe junto ao velho rádio Philco, ouvindo notícias do Catete. Na verdade, não era assunto que me interessasse, embora visse o retrato do “Velho”, como meu pai o chamava, por toda parte: na vendinha do “seu” Leon, na barbearia, na padaria. Também não dei importância às mulheres nos portões, em rodinhas, algumas disfarçando uma lágrima. Importante era pegar a caixinha de papelão com as esferas de vidro prontas para o desafio.
Bons tempos, grandes combates, mas as goiabeiras foram abatidas, e o casarão, posto no chão. O mercado deu lugar a um banco. Não sobrou nem um metro quadrado de terra para se escavar os quatro buracos do jogo de bolinha de gude. Foram-se também os húngaros e suas vaquinhas, vencidos pelo progresso e pelas lojas de automóveis usados.
Goiabas, hoje em dia, só nas feiras e supermercados. Também não existem mais mulheres que chorem por causa de seu presidente, a não ser, talvez, no sentido figurado.
Mas aí já é outra história.

sábado, agosto 12, 2006

EU FAZIA ISTO TAMBÉM

Não citei, no post anterior, uma coisa que eu fazia naqueles bons tempos: matava aula no Saldanha Marinho, pegava o bonde São Jorge e ia assistir aos treinos do Corinthians. Isso numa época em que os jogadores tinham vergonha na cara.

quarta-feira, agosto 09, 2006

SE VOCÊ FEZ ISTO ALGUM DIA...

SE VOCÊ MOROU NO BELENZINHO...


Nasci e vivi boa parte de minha vida no bairro do Belenzinho, em São Paulo. Muitos o chamam de Belém, mas diz a lenda que este nome foi dado porque o letreiro “Belenzinho” não cabia no mostrador dos primeiros bondes que chegaram ao bairro e “Belém” acabou pegando. Hoje não há mais bondes e a estação do metrô chama-se Belém mesmo.
Bem, isso pouco importa. O que interessa é que o bairro tem muitas histórias para contar a os mais saudosos, como eu, devem ter feito pelo menos uma coisa que marcasse sua passagem pelo lugar.
Na verdade, quem lá viveu, deve ter feito alguma dessas “façanhas”:
- Pegou carona no bonde 45, na rua Belém, indo até o largo São José, dando voltas pelos estribos só para não pagar passagem ao cobrador.
- Tomou porre de vinho Carparelli, na adega do mesmo nome, situada atrás da igreja de São José.
- Comeu bomba de chocolate na confeitaria Mimosa.
- Jogou bilhar no Jacaré, também no Largo.
- Freqüentou as matinês do cine São José.
- Pulou nos bailes de carnaval, também no salão do cinema.
- Matou aula no Colégio Saldanha Marinho, para ir ao cine Íris, ao lado da escola.
- Matou aula no mesmo colégio para jogar bilhar em frente à escola.
- Comeu pastel na Pastelaria Chinesa, na rua Silva Jardim, perto da passagem de nível da Central do Brasil.
- Pegou carona nos trens de carga da Central manobrando perto da porteira.
- Abriu pelo menos uma vez a porteira manual da linha do trem, ANTES da passagem do mesmo (para deixar o guarda-cancela puto da vida).
- Bateu bola no campo do Marabá, ao lado da linha do trem, na rua Serra de Araraquara.
- Comeu bolinho de bacalhau com Caracu, no boteco ao lado do campo.
- Dançou no salão do Metalúrgica Paulista F.C.
- Desceu a rua Passos para ir nadar na lagoa do Salada, ao lado do rio Tietê, quando nem se imaginava a construção da Avenida Marginal.
- Estudou no G.E. Amadeu Amaral, com “seu” Júlio batendo uma enorme sineta nos horários de entrada e saída.
- Foi para o centro da cidade nos ônibus da linha “75”.
- Foi para o centro da cidade nos primeiros bondes tipo “camarão” (porque eram pintados de vermelho). Um luxo.
- Estudou datilografia na Escola Álvaro Guião, com suas máquinas Remingtonn já pré históricas naquela época.
- Pegou o ônibus “Vila Santa Isabel”, da Viação Cometa (sim, senhor, Viação Cometa), e ir até aquele bairro para ver o “milagre” da imagem da Santa que aparecia numa garrafa de água.
- Amassou barro na Vila Santa Isabel para ver a santa e voltou de lá sem ter visto nada.
- Assistiu a memoráveis jogos entre o Fileppo e o Radium, no campo daquele, na Siqueira Bueno, e que invariavelmente terminavam com monumentais brigas.
- Comprou sapatos na Sapataria Pitta (que existe até hoje).
- Assistiu triste ao fechamento definitivo da cancela da passagem de nível e a demolição de muitas casas para construção do viaduto.

Quem passou por essas situações, ou algumas, entende porque a vida era boa naquele tempo.
Saudosista, eu? É, sou mesmo.