CAMINHOS DE PAPEL

segunda-feira, agosto 29, 2005

NO TEMPO DAS GALOCHAS


O tempo está passando e eu indo com ele. Não que isso seja mau pois me dá espaço para recuperar fatos marcantes de minha vida, como propaganda e televisão.
Hoje, penso não haver propagandas que criem uma imagem duradoura, daquelas a serem lembradas daqui a quinze ou vinte anos. Liga-se a TV e o que aparece é um belo automóvel ao lado de uma mulher sedutora; parece que os dois estão à venda. Com a cerveja, idem. Se não aparecer uma garota semi-nua, a marca do produto será desprezada.
Lembro-me do tempo de criança, mesmo antes da chegada da televisão, dos assim chamados reclames a anunciar produtos populares, mas cujo apelo tinha grande penetração no público e, por isso mesmo, até hoje não me saem da memória as músicas que os acompanhavam.
A que anunciava o creme Rugol era um clássico. Seus versos diziam "as rosas desabrocham/com a luz do sol/e a beleza das mulheres/com o creme Rugol". E a do Run Bacardi, alguém aí lembra? Para não falar das Pílulas de Vida do Dr. Ross.
Dura lex, sed lex, nos cabelos só Gumex. Esse slogan era a chave de apresentação de um preparado, um pó, que misturado à água, transformava-se num gel (não era esse o termo usado na época). Aplicado aos cabelos masculinos, deixava-os duros como arame e nem um tufão os desmancharia.
Bons tempos aqueles, do Óleo de Fígado de Bacalhau, que trazia no rótulo a figura de um pescador trazendo nas costas um belo exemplar da família dos gadídeos. E se lhe doessem as costas, não haveria problema; uma massagem com o Linimento de Solan resolveria.
Essas propagandas não vingaram na televisão. Dela, quase nada me lembro nesse campo, mas recordo-me com saudade da série Perdidos no Espaço, das lutas-livres dos sábados à noite, fã que era do terrível Rikidozan ou de Fantomas. E havia o infantil Pim, Pam, Pum, patrocinada por brinquedos Estrela, muito, muito antes do aparecimento dos brinquedos descartáveis de Taiwan. Era pura ingenuidade; não havia loirinhas rebolantes e insinuantes e os desenhos não traziam monstrinhos japoneses, tudo isso na tela da antiga TV Record, ainda a anos-luz das atuais igrejas mercenárias. Justiça seja feita, havia também o Clube do Papai-Noel, na PRF3, TV Tupi, apresentado por Homero Silva e uma garotinha chamada Sonia Maria Dorse, hoje uma provecta advogada.
Era também a Record (a Globo da época, só que com boas intenções), que trazia Maria Aparecida Baxter, cuja figura sempre me vem à mente quando vejo o logotipo da Casa do Pão de Queijo, contando historinhas que antecediam o seriado Baskhala, o terror do deserto. Dela, Record, me lembro também de Cinderela (jamais soube seu nome), que aparecia vestida de rumbeira anunciando produtos de uma loja que vendia jogos de jantar. Nunca liguei uma sopeira com as pernas da loirinha. Mas era tão inocente, tadinha, que faria as Cicarellis de hoje rolarem de rir.
Eram tempos bons mesmo, e que lembrados hoje trazem saudades para uns enquanto outros me acham um chato de galochas, as quais, diga-se, um dia cheguei a usar.
E não me conformo até hoje.



quarta-feira, agosto 24, 2005

LOTERIA

Não deu cobra, não deu leão.

Pedacinhos de sonho,

espalhados pelo chão.

segunda-feira, agosto 15, 2005

CAFÉ DA MANHÃ

(releitura do poema de Jacques Prévert, Déjeuner du matin, 1º lugar do Prêmio Paul Harris, de Crônicas, no Algarve, Portugal, 2003)

Sentado à minha frente, calado, ele acendeu o cigarro sem mesmo me olhar, numa indiferença atordoante, medida exata de seu desprezo. Enterrei-me dentro de mim ainda mais, numa fuga dessa realidade. Era terrivelmente doloroso admitir que nosso relacionamento chegara ao fim, num ritual de flagelação se estendendo além daquilo que alguém pudesse aceitar como razoável, fosse ali à mesa do café, fosse em qualquer outro lugar.
Loucura! Parecia inadmissível haver algo de razoável num fim de caso como o nosso. A noite anterior fora de uma dilaceração canibalesca fazendo-me, agora, sangrar em silêncio sobre a toalha branca. Ele desistiu de mim; como mulher, como pessoa, como nada. Resvalou no patético eu pensar em continuar algo definitivamente interrompido, assustada demais para aceitar a verdade.
Cabeça baixa e cotovelos sobre a mesa, ele girou lentamente a colherinha na xícara de café quase vazia, como se procurasse ler algum futuro na borra enegrecida da bebida. Tenho certeza que, como eu, não viu nada além do líquido escuro, como escura fora nossa vida.
Displicente, amassou o cigarro no cinzeiro e engoliu o resto da bebida, fazendo-me imaginar como se a ele tivesse sido dada cicuta. Sorri para dentro por pensar assim. Senhor de si e de suas ações, ele não se daria a esse sacrifício. Senhor de mim também, mesmo não me querendo. Numa inexplicável contradição, manteve-se cabisbaixo, dedo indicador empurrando algumas migalhas de pão de um lado para outro.
Isso me paralisou. Agoniada, esperei por seu momento de carrasco, que me encarasse e me destruísse de vez, pondo de lado aquela indiferença de víbora adormecida, sempre pronta para atacar.
Suspirou fundo; parecia estar carregando um enorme peso sobre os ombros. Olhou para a janela que mostrava uma manhã de chumbo. As gotas da chuva escorrendo pelo vidro, fizeram-me ainda mais infeliz ao procurar por minhas próprias gotas para colocar sobre a mesa.
Empurrou a xícara para um lado, levantou-se e vestiu o paletó. Depois de acender outro cigarro, foi até a porta da cozinha deixando sobre seus passos um fio tênue de fumaça, que aos poucos foi desaparecendo. Imóvel por instantes olhou, sempre calado, as poças no quintal.
Saiu para a chuva e eu fiquei vendo seu vulto lentamente desmanchando-se na cortina de água. Do fundo da memória, tal um aviso tardio, ocorreram-me fragmentos de Prévert, descrição amarga de um amor transformando-se em migalhas: “Et il est parti sous la pluie; sans une parole, sans me regarder. Et moi, j’ai pris ma tête dans ma main, et j’ai pleuré(1).
Veio uma lágrima, e outra, e outra, de uma mulher mergulhada numa torrente da qual, em verdade, jamais tenha saído.

(1) E ele partiu sob a chuva, sem uma palavra, sem me olhar. E eu, pus as mãos na cabeça, e chorei.

terça-feira, agosto 02, 2005

OLHAR DE HELENA


Foram tempos tristes. Tempos cinzentos, de homens duros e suas almas corrompidas. A prepotência dominou-os e interesses mesquinhos violentaram a vontade das gentes. Foram tempos de mistérios, de sangue e de nenhuma explicação. Ou de explicações que a eles convinham.
Helena viveu esses tempos. O azul-mar de seus olhos fazia contraponto àquela escuridão. Mas trazia, também, um mistério abissal.
Quando ela chegou à cidadezinha, instalou-se num antigo casarão ao alto da rua de calçamento de pedras pé-de-moleque onde, por horas, debruçava-se à janela numa espera angustiada. Fossem outros os tempos e alguém diria ser ela a musa de algum poeta lá das Gerais.
Não era. A candura de seu olhar contrastava com a dor que trazia no peito.
Ela teve, souberam, seu homem arrancado dos braços e levado por figuras sem rosto, sem nome, soturnos como aqueles tempos. Levado dali, nunca reapareceu.
Em seu desespero, Helena bateu em portas, percorreu salas escuras e corredores tortuosos. Questionou, suplicou, sempre em vão. Aos poucos foi perdendo a luta da procura por idéias desaparecidas nos porões dos homens.
E Helena postou-se à janela numa longa e vazia espera. Os dias foram caindo folha a folha, e ela sempre debruçada no peitoril. Derramava pela rua a tristeza de seu olhar; os longos cabelos faziam-se de cortinas a emoldurar o rosto alvo e desciam até as bordas dos seios redondos.
O segredo maior aos poucos revelou-se. Em seu ventre ficara uma semente que germinou, cresceu e floriu.
Helena colheu aquela flor, fechou a janela e partiu.