CAMINHOS DE PAPEL

domingo, julho 30, 2006

TROPA DE MULAS



É sabido que, no passado, tropas de mulas eram trazidas do sul do país para serem negociadas na região de Sorocaba. Era um negócio lucrativo e foi importante no desenvolvimento das regiões sudeste e centro-oeste. Nesse percurso do Rio Grande do Sul até seu destino, esses aventureiros criaram vilas que acabaram se transformando em cidades.
O tempo e a evolução dos transportes deu fim a essas heróicas jornadas, hoje pouco lembradas pelos brasileiros.
Foi no programa Globo Rural, da TV Globo, que esses heróis e suas jornadas foram relembrados através da recriação dessas caminhadas. Na edição de hoje, foi mostrado o início de uma viagem de tropa, partindo de seus pontos originais. O caminho a ser percorrido será o mesmo, passando por cidades agora enormes ou caminhando por asfalto, mas sempre relembrando o que eram aquelas aventuras.
Sempre emociona ver que brasileiros se esforçam para manter o espírito vivo daquilo que hoje é história, mas um dia foi epopéia. Emociona também, ver que jovens partilham dessa aventura e até crianças, mesmo sem participar, também são tocadas pelo espírito da aventura. Foi mostrado um menino, devidamente pilchado (para quem não sabe, significa caracterizado como gaúcho), manejando o laço, pois trazia no sangue a marca de seus ancestrais.
Emocionante também, foi a presença de “José Tropeiro”, de 83 anos, também trajado, e louco para participar da jornada. Claro, não lhe foi possível, mas nem por isso deixou de mostrar sua força de tropeiro, gaúcho e brasileiro: com essa idade, ainda monta, laça e disputa torneios com seu filho e seu neto.
A história está presente na pessoa de “seu” José, brasileiro, gente do povo, gente nossa.
E pensar que certa pessoa vem e nos diz que, além dela, só Getúlio Vargas se aproximou mais do povo.
Pára de falar besteira, tchê.



sexta-feira, julho 28, 2006

PROVÉRBIOS CONTEMPORÂNEOS

NELSON MOTTA - Folha de São Paulo, 28/7.


RIO DE JANEIRO - Além de ser o país da piada pronta, como diz o Zé Simão prenhe de razão, vivemos em uma terra onde se subverteu e se desmoralizou até mesmo provérbios universais consagrados pela sabedoria popular. A começar pelas medonhas galerias de sanguessugas e mensaleiros, desmentido cabal de que as aparências enganam. Aqui, ladrão que julga ladrão dá cem anos de perdão, aqui é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que o STF condenar um parlamentar, aqui se faz e aqui não se paga. No Brasil, o ladrão faz a ocasião, geralmente com emendas parlamentares e contribuições de campanha. Neste país, quem dá aos pobres (com dinheiro público) empresta ao eleitor, mais vale uma verba na mão do que duas emendas voando, a liberdade deles começa onde termina a nossa. Neste país ajeitadinho, contra os fatos não há argumentos, só bons advogados e lobistas, macacos velhos têm cumbucas em paraísos fiscais, dinheiro sujo não se lava em casa. São partidos, partidos, negócios à parte, a parte de cada um no negócio. Como se tem visto e ouvido em rede nacional, mentir e coçar é só começar, quem rouba um conto esconde um ponto, devagar não se vai a lugar nenhum e CPI que ladra não morde. O segredo é a lama do negócio. No Brasil, tristezas não pagam dívidas de campanha, quando um burro fala os outros aplaudem, os cães ladram e a caravana é assaltada, quando um não quer dois não roubam, chamam mais gente. Quem nunca comeu melado se lambuza em estatais, quem elegeu os Matheus (Rosinha e Garotinho) que os embale. Deve-se dar a Lula o que é de Deus e a César a Prefeitura do Rio, porque Deus e Lula, não necessariamente nessa ordem, dão a bolsa conforme o eleitor. Espero que quem o voto fere pelo voto seja ferido.

sexta-feira, julho 14, 2006

A CORDA, AS DUAS PONTAS E SUA METADE



Quem nunca brincou de cabo-de-guerra? Provavelmente, nem que tenha sido pelo menos uma vez na vida, todos tivemos essa brincadeira onde uma pessoa, ou várias, em cada ponta de uma corda a puxavam a seu favor, querendo desbancar a turma oponente.
Esse brinquedo pode, curiosamente, ter várias interpretações; desde uma atividade pueril até uma disputa, no sentido figurado, da conquista de posições na sociedade, sejam estas éticas ou não.
O que estamos assistindo nestes últimos dias (repetição de outros passados e alerta sobre aqueles que poderão vir) em São Paulo (cidade e estado), mostra um horripilante jogo de cabo-de-guerra. De um lado, uma facção criminosa que conseguiu se organizar de tal forma a poder afrontar o Estado e seus representantes. De outro, esses representantes e seus prepostos, escolhidos pelo cidadão comum, que dão mostras de uma tibieza inaceitável a despeito de seus discursos pomposos, promessas mirabolantes, sempre escudados em intenções políticas, dissimuladas ou não.
O curioso é que nesta brincadeira, há três grupos de competidores; os dois acima citados, e no meio da corda, a população, que é puxada de um lado para outro, sem forças para controlar a disputa.
Curioso, também, e não menos repulsivo, é o fato de que em qualquer disputa entre grupos, é sempre o do meio que carrega o ônus dessa luta dos contendores nas pontas da corda.
Vejamos: quando uma determinada categoria (metroviário, motoristas e cobradores, metalúrgicos, professores (eles também), trabalhadores da construção civil, médicos e enfermeiros, agentes da Receita Federal, bancários, camelôs, Sem-terra, Sem-teto) quer reivindicar algo, sem o menor escrúpulo tomam a população como refém: paralisam os transportes, fecham avenidas ou simplesmente cruzam os braços como fizeram os fiscais da Anvisa, não permitindo a entrada de materiais médicos importados, muitos de urgência e pondo em risco a vida de cidadãos que pagam impostos.
Do outro lado da corda, o poder público: o Executivo, quando é o caso, faz ouvidos de mercador, mas com uma voz de tenor: discursos, promessas e só. O Judiciário, vítima de sua própria lerdeza e de leis mais do que ultrapassadas, não se impõe, não decide e não faz cumprir.
E o Legislativo? Ora, neste caso, eu precisaria de mais tempo, mais paciência e mais estômago para falar sobre essa instituição cada vez mais desmoralizada. Deixa quieto, portanto.
E sobramos nós, no meio a corda. Puxados de um lado, de outro, aguardamos a mesma arrebentar.
Parece, contudo, que ninguém está percebendo que, se isso acontecer, todos cairemos juntos ao fundo do poço.

segunda-feira, julho 03, 2006

ENTREVISTA COM O MORTO


­- Como é seu nome?
- Luiz Carlos Cordeiro, seu criado.
- Quando foi que você morreu?
- Ah, foi em 91, não lembro direito o dia, não, senhor.
- E que idade você tinha nessa época?
- Trinta anos, doutor.
- E como aconteceu?
- Foi num assalto, moço. Eu trabalhava de cobrador de ônibus, aconteceu o assalto. Eram três elementos; entraram no ônibus, pegaram o dinheiro da gaveta e me deram um tiro no peito.
- Pegaram os assassinos?
- Que eu saiba, pegaram não, doutor. Aliás, quando isso acontecia, e acontece ainda hoje, o caso logo caia no esquecimento.
- Você parece um tanto revoltado com isso. Estou certo?
- Está sim, doutor. Muito certo.
- Por quê?
- Não sei se o senhor se lembra, nesse ano, mais ou menos na época em que eu morri, aconteceu aquele negócio que chamaram de “massacre do Carandiru”.
- E o que tinha a ver com seu caso?
- Com meu caso, nada, seu doutor, mas com o que aconteceu em volta daquele bafafá todo, sim.
- Me explique.
- Quando eu morri, meus colegas fizeram uma paralisação de protesto, seguraram os ônibus na garagem, veio a imprensa, mas não deu em nada, não.
- Continuo não entendendo.
- Quando aqueles cento e onze infelizes foram mortos na penitenciária, pareceu que o mundo ia cair. A jornais deram manchete por vários dias. O pessoal desse tal de Direitos Humanos botou a boca no mundo; veio até uma dona, gringa, de um tal de Humans Rights Watch, de narizinho empinado, que queria porque queria, saber do que tinha acontecido. Teve até um padreco importante, acho que um tal de dom Evaristo Arns, que correu pra rezar uma missa para os mortos, acompanhado de outros doze padres, na Catedral da Sé.
- E isso te deixa revoltado?
- E não é pra deixar, seu doutor? Eu tive uma missazinha, sim, que meus colegas se cotizaram e mandaram rezar lá em São Mateus, mas não teve jornalista, político, nem filho da puta nenhum pra prestar solidariedade.
- E das comissões de Direitos Humanos? Apareceu alguém?
- Nem aquela hora, nem em qualquer outra.
- Você tinha família?
- Sim, eu era casado e tinha dois filhos pequenos.
- E que acontece com eles?
- Até onde eu sei, não foram procurados por ninguém pra receber qualquer ajuda que fosse.
- Por que você resolveu desabafar agora?
- Veja bem, doutor. Aqui no limbo onde me encontro, a gente tem notícia do que acontece por aí. E a gente fica puto da vida com o que acontece?
- O quê, por exemplo?
- Esse tal de Direitos humanos.... serve pra quê?
- Bem, para defender o cidadão contra as injustiças, proteger aqueles ameaçados pelos bandidos... coisas assim.
- E também pra proteger alguns desses bandidos, né, doutor?
- Acho que não é bem assim.
- Não é assim, porra nenhuma. Pensa que nós, os mortos, na sabemos das coisas? Acha que nós não vemos que estão fazendo dessa Suzanne Ritch... Ritchte.. sei lá que nome de merda, uma coitadinha? E esse tal de Pimenta das Neves? Dá um tiro na cabeça da namorada caída no chão e fica solto por aí como se tivesse matado um cão. Ora, doutor...
- Bem, devo admitir que certos casos também me deixam meio cabreiro.
- Pois o senhor deveria ficar cabreiro por inteiro. O senhor acha justo que um bandidão daqueles da pesada sejam tratados a pão-de-ló? Que um promotor possa matar um cidadão com dez tiros e continuar solto? E trabalhando? Que o mandante dos assassinos daquela freira do Pará saiam da cadeia?
- Bem, a Justiça é um pouco lerda e muito burocrática.
- Justiça? Não me faça rir. Quando uma quadrilha de bandidos, daqueles bem fodidos, é aniquilada pela polícia, a primeira coisa que fazem é investigar se houve excessos nessa ação. Isso, mesmo se comprovando que os bandidos estavam armados até os dentes e passeavam pela cidade como se fosse um filme de faroeste. Lembra daquele caso da Castelinho? Um ônibus lotado de bandidos armados até os dentes, rumando para Sorocaba – não era pra fazer compras, não – foi interceptado pela polícia e no frege, todos foram mortos. Quem apareceu pra criticiar? Os mesmos demagogos de sempre, exigindo investigação, justiça, os escambau. Ninguém se importou em procurar saber o que eles, os meliantes, iam fazer, onde e com quem.
- Nesse ponto você...
- Peraí, doutor, eu ainda não acabei. Quando a polícia reagiu, depois daqueles atentados em São Paulo, esses defensores dos tais de Direitos Humanos, ficaram pissudos querendo saber se houve excesso. Bom, tenho de admitir que pode ter havido, sim, só que eu não vi nenhum membro dessas comissões ir visitar as famílias dos policiais mortos. Direitos Humanos só de um lado? Ora, pode parar...
- A violência gera violência. Você acha certo?
- O que eu acho, doutor, é que ela nem deveria começar. Mas, pelo andar da carruagem acho que ainda vamos ver muito sangue correr. Quem viver verá. Quem viveu, também. Não tá vendo os quatro agentes penitenciários assassinados nos últimos dias? Com Copa do Mundo e tudo.
- Pelo seu tom, parece achar que vem mais coisa por aí.
- Ah, ah, ah, ah… o senhor disse “parece”? O senhor ainda não viu nada.
- Uma palavrinha final.
- Um alô pra minha mulher e meus dois filhotes. Não sei o que aconteceu com eles, ninguém sabe. Ninguém se importou. Ninguém mesmo.