CAMINHOS DE PAPEL

segunda-feira, janeiro 30, 2006

ABERTO PARA BALANÇO

Ontem fechei mais um ciclo em minha vida. Acumular sessenta e quatro anos neste mundo, vasto mundo (e não sou rima, nem solução), foi uma barra. Assisti a acontecimentos que mudaram a história e, a bem da verdade, mudariam mesmo que eu não assistisse. Participei de outros onde, por mínima que fosse minha presença, mudou muita coisa (votar em Jânio, FHC e Lula, por exemplo, foram pisadas na bola que ficarão anotadas no meu currículo).
Também acumulei experiência profissional nos vários trabalhos que tive. Se serviu para construir meu patrimônio (que jamais mereceria uma CPI), mostrou também outros caminhos para os quais meus velhos um dia apontaram o dedo e disseram “vai!”.
Tive de ralar muito. Descontada a fase feliz da infância, onde livros e lições se misturavam com jogo de bola e vidraças quebradas), passei a cavoucar a vida; mal entrado na adolescência tive de ir estudar à noite e trabalhar de dia pois, ainda que não tivessem inventado a inflação (ou melhor, ela existia, mas com a desimportância que nós, classe média baixa, lhe dávamos), uns cruzeiros a mais ajudavam no orçamento da casa. Só parei de estudar, mesmo, já com filhos me aguardando em casa, geralmente dormindo, pois chegava altas horas e de língua de fora.
Se, na rua, mais especificamente nos empregos que tive, curti amizades que ainda conservo, foi dentro de casa que encontrei o apoio fundamental nessa longa caminhada que empreendo até hoje. Marli, minha companheira, que desde cedo ralou no magistério, foi o braço que me amparou nas horas difíceis, riu e chorou comigo, me empurrou quando eu parava e me segurou quando eu ameaçava cair. Foi mãe, esposa e mulher, tudo na exata e sensata (e, às vezes, deliciosamente insensata) medida.
Ontem reuni quase todos (a maninha não estava); esposa, filhos, netos e amigos, e soprei velinha (fazer isso com os netos no colo não tem preço),
O que eu quero, agora? Curtir o tempo que tenho pela frente, não importa quanto, mas como. Ver o sorriso dos netos, ter o calor dos amigos, o amor da companheira e uma vida inteira para continuar o menino deslumbrado que sempre fui.
P.S. – Se não for pedir muito, quero ver o meu Corinthians levantar a taça neste ano. Pô!... É pedir demais?

segunda-feira, janeiro 23, 2006

A FÁBULA DO GALINHEIRO

De tanto criticarem seu galinheiro, o dono da granja resolveu consertar o lugar. É verdade que as reformas já se faziam necessárias antes mesmo de ele comprar o local mas, indiferente aos apelos até de suas criações, deixara para trás esses consertos que, com o tempo, passaram a pedir cada vez mais sua atenção.
Tratou, então, de verificar o dinheiro de que poderia dispor para tais obras e resolveu começá-las. Seus vizinhos, quando souberam do fato, puseram-se a criticá-lo. Como podia o granjeiro, argumentavam eles, efetuar os grandes consertos que o galinheiro exigia com uma verba, concluíram, insuficiente?
Além disso, consideraram outro aspecto: não era a época apropriada para se realizar os trabalhos, pois chovia muito nesses tempos e boa parte do trabalho seria perdida já que o dinheiro disponível não permitia compra de matérias de primeira qualidade.
O granjeiro ficou irritado com a postura dos vizinhos. Não eram eles que criticavam o estado lamentável do galinheiro? Pois agora iriam ter o conserto, agradasse-lhes ou não.
Não vai dar certo, diziam os outros. Da maneira que o trabalho seria feito, não agüentaria a investida das raposas. As galinhas é que pagariam o pato ( este, a bem da verdade, nada comentou pois estava acostumado a pagar sempre). Houve até um galo que reclamou, pois achava que os remendos não iriam durar muito. Mas, com a ameaça de acabar numa panela, fechou o bico.
Das galinhas, então, nem se fala. Ficaram quietinhas ciscando aqui e ali. Não reclamavam de nada e as más línguas até diziam que se elas não sabiam nem voar, seria melhor que ficassem caladas mesmo.
E o granjeiro, sempre se manteve indiferente às críticas, pois não acreditava nem na existência das raposas. Eu nunca soube de nada, garantiu.
As obras começaram; o granjeiro ia sempre verificar os andamentos dos trabalhos e, na sua percepção, via a alegria estampada na cara dos galos, galinhas e patos. Sobretudo estes.
Enquanto isso, as raposas se aproximavam mais e mais.




domingo, janeiro 15, 2006

TRAIÇÃO


Geralmente eles chegam quando o sol ainda nem se levantou. No dia anterior, foram sendo arregimentados com um fim específico: invadir um sítio, fazendola, ou qualquer pequena propriedade que seja, previamente escolhida. Partem quando já é noite alta e viajam sob as estrelas ou chuva forte. Nada os detém.
Sempre a cavalo, carregam numa das mãos uma foice, símbolo do movimento. Suas mulheres os acompanham; companheiras fieis, sabem que na lida terão um lugar onde darão inestimável apoio.
Ao chegarem ao lugar escolhido, encontram o proprietário recém-acordado, rosto cheio de surpresa e feições marcadas pela dureza da vida campesina. Passado o instante do impacto, o dono só lhes oferece aquilo que lhe é possível dar: um sorriso e um bom dia à comitiva que, de forma supina, vem se igualar ao homem naquele momento com urgentes necessidades, mas difíceis de serem contornadas sem um apoio amigo.
Essa ocorrência e seu nome, “traição”, têm origens remotas no tempo e nos fundões do Mato Grosso; o movimento nada mais é que o da solidariedade de uma comunidade rural para com alguém que precisão tenha.
A comitiva logo se distribui nas tarefas; capinar o pasto, consertos das cercas ou na casa de moradia, marcar ou vacinar animais, enfim, tudo que aquele proprietário está com dificuldades em implementar.
Os invasores o fazem, felizes. Entoam cantigas de incentivo durante a lida enquanto as mulheres preparam o almoço da tropa, pois ninguém ali chegou de matulagem.
Mais tarde, sentados ao chão, à sombra das árvores, dividem aquilo que trouxeram, irmanam-se, e mais uma vez está cumprida a tradição do homem brasileiro, este sim, festejado como cordial.
Isso tudo eu assisti num domingueiro programa matinal na TV, mas ela, como veículo de informação, e como tantos outros, também traz outras notícias de traições que de várias maneiras ocorrem por aí e nem por um momento podem ser legitimadas como atos de fraternidade. Pelo contrário, carregam um sentimento de que, se o brasileiro é um forte, muitas vezes ele é esmagado pelo cinismo de quem se diz de bem.
Sentei-me frente ao computador e escrevi esse texto. Mas não quis me alongar. Por que iria estragar o resto do meu dia?

segunda-feira, janeiro 09, 2006

O ENCONTRO


Ela chegou ao restaurante um pouco mais cedo do que planejara. Conduzida pelo maître até a mesa reservada para duas pessoas, acomodou-se, contudo sem estar preocupada com o fato de ter chegado bem antes de sua companhia. Na verdade, havia concedido a si mesma o resto da tarde e queria aproveitar tudo o que de bom esse espaço de tempo pudesse lhe oferecer.
Descontraída, pediu um coquetel enquanto corria os olhos pelo ambiente que já trazia várias mesas ocupadas, não encontrando, como pretendia, nenhum rosto conhecido. Intimamente, sentiu-se aliviada, pois não estava mesmo querendo ser reconhecida por ninguém, possibilidade não de todo improvável visto ser ela uma figura de destaque no mundo dos negócios. Empresária bem sucedida, não obstante seus poucos mais de trinta anos, galgara com rapidez e competência os degraus que a levaram àquela posição. Num universo dominado pelos homens não só mostrou-se independente e enérgica, como granjeadora de amizades e antipatias na mesma proporção por não medir esforços para atingir seus objetivos,
A bebida veio e ela mal provou-a deixando na borda da taça a marca de seus lábios vermelhos. Olhou para o relógio, mais por hábito do que por impaciência, tomou mais um pouco um pouco do drink e voltou aos pensamentos, lembrando do ocorrido uma semana antes quando, num vernissage, acontecera o casual encontro.
A partir daí, mesmo para uma mulher acostumada a ser racional com suas emoções, o que se seguiu foram telefonemas de parte a parte, num dissimulado jogo de sedução. Estava criado de forma irreversível um certo ar de mistério e aventura. Sem compromissos afetivos, excitava-a o fato de sentir-se atraída por alguém que lhe passava esses sentimentos de uma forma inesperada e atrevida.
Não se sentia culpada por isso, nem mesmo por partir de si a iniciativa do convite para aquele almoço e esboçou um sorriso pelo juízo que fazia do ato; seria apenas um encontro para conversarem, foi o pensamento tentando convencer a si mesma. O rumo a que poderiam levar aquelas conversas, seria apenas uma natural conseqüência, concluiu inculpando-se secretamente.
Tomou outro tantinho do drink e de forma discreta olhou ao seu redor. O restaurante já estava mais movimentado e sabia que o encontro se daria sem maiores percalços, pois a ninguém seria dado o direito de suspeitar haver interesses outros que não fosse aquele um encontro de negócios ou apenas de amizade.
Uma mulher a olhou, tão somente curiosa quanto desinteressada. De outra mesa mais próxima, um homem sorriu-lhe discretamente, talvez na esperança algo que, ela sabia, jamais se realizaria.
Calmamente, voltou ao seu drink com um leve sorriso a moldar-lhe os lábios sensuais. Como mulher, sentia-se lisonjeada por ser notada, mas na hora imprópria. Tinha outros planos e, mesmo admitindo que o sujeito lhe parecia ser um cavalheiro, pensava no que o encontro marcado poderia lhe proporcionar. Telefonemas trocados durante a semana abriram espaço para muita indagações não concretizadas - nada ficara explícito – e ela queria saber até onde iriam os caminhos inimagináveis de uma sedução velada.
O proibido causava-lhe uma certa excitação. Sua atribulada vida profissional pouco espaço lhe deixava para emoções no campo dos sentimentos, mas essa, especificamente, era-lhe um desafio daquele tipo que nunca encontrara espaço para tais ousadias.
Olhou outra vez para o relógio e para o ambiente. Casualmente, o cavalheiro de instantes atrás voltara-se e os olhares se cruzaram. Ela voltou ao drink sem pensar em coisas outras que não fosse o encontro que estava prestes a acontecer.
Todo o resto, sorriu, eram meros detalhes.